O recente leading case do STJ a respeito da atuação do INPI na análise dos contratos de Transferência de Tecnologia

Autor: Gabriel Leonardos

Mestre em Direito (USP) / Sócio de Kasznar Leonardos Advogados

Em 16 de fevereiro de 2017 a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu um leading case no qual a Corte se pronunciou favoravelmente à intervenção do INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial nos contratos internacionais de transferência de tecnologia, incluindo de licenças de marcas, patentes, desenhos industriais, franquias e de assistência técnica. A seguir, transcrevo a ementa deste recente acórdão:

“Administrativo. Mandado de segurança. INPI. Contrato de transferência de tecnologia. Averbação. Alteração de cláusula por parte da autarquia. Descabimento. Lei n. 4.131/62. Matéria não prequestionada. Art. 50 da lei n. 8.383/91. Royalties. Dedução e pagamento. Questão de fundo. Atuação do INPI. Artigo 240 da lei 9.279/96. Interpretação adequada. Valoração da Cláusula geral de atendimento das funções social, Econômica, jurídica e técnica. Finalidades públicas Preservadas. Precedentes. Denegação da ordem. Recurso parcialmente conhecido e negado provimento.

I – Ação mandamental impetrada na origem, na qual empresas voltaram-se contra ato administrativo praticado pelo INPI que, ao averbar contratos de transferência de tecnologia por elas celebrados, alterou cláusulas, de forma unilateral, fazendo-os passar de onerosos para gratuitos.

II – Ausência de prequestionamento em relação às matérias constantes nos invocados artigos da Lei n. 4.131/62. Incidência das Súmulas nºs 282/STF e 211/STJ.

III – A discussão acerca de possível violação do art. 50 da Lei n. 8.383/91 diz respeito à questão de deduções de pagamento de royalties, matéria de fundo dos contratos, que não interfere na deliberação dos autos, restritos à análise de limite de atuação administrativa do INPI, matéria atinente à Primeira Seção desta Corte.

IV – A supressão operada na redação originária do art. 2º da Lei n. 5.648/70, em razão do advento do artigo 240 da Lei 9.279/96, não implica, por si só, em uma conclusão mecânica restritiva da capacidade de intervenção do INPI. Imprescindibilidade de conformação das atividades da autarquia federal com a cláusula geral de resguardo das funções social, econômica, jurídica e técnica.

V – Possibilidade do INPI intervir no âmbito negocial de transferência de tecnologia, diante de sua missão constitucional e infraconstitucional de regulamentação das atividades atinentes à propriedade industrial. Inexistência de extrapolação de atribuições.

VI – Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, negado provimento.

(Recurso Especial nº 1.200.528-RJ, da 2ª Turma do STJ, j. em 16.02.2017, unânime, rel. Min. Francisco Falcão)

Antes de examinar os detalhes desta recente decisão, irei expor o histórico da questão. Sabe-se que a validade dos contratos internacionais de transferência de tecnologia não está sujeita ao dirigismo contratual do INPI, mas a aprovação prévia pelo INPI de tais contratos é indispensável para a produção de diversos efeitos relevantes, o que faz com que, na prática, tal aprovação seja indispensável em um grande número de casos. Assim, a aprovação pelo INPI produz os seguintes efeitos: (a) autoriza a remessa de pagamentos ao exterior, habilitando o licenciado brasileiro a realizar os contratos de câmbio; (b) quando o licenciado é uma empresa tributada pelo lucro real, a aprovação pelo INPI permite a dedutibilidade fiscal dos pagamentos como despesas operacionais, dentro de limites fixados pela Portaria nº 436, de 30.12.1958, do Ministro da Fazendo (ainda hoje em vigor, com pouquíssimas alterações); (c) concede ao licenciado legitimidade ad causam ativa para mover ações contra terceiros infratores, desde que tal possibilidade esteja prevista no contrato; e (d) cria uma presunção legal de publicidade, ou seja, de conhecimento erga omnes do contrato (ainda que o INPI publique apenas um breve extrato do contrato, para noticiar a sua existência e condições básicas, e jamais forneça cópias a terceiros).

No processo de aprovação de um contrato pelo INPI, esta autarquia federal, desde sua criação em 1970, sempre se considerou autorizada a exigir modificações das condições contratuais, e caso as partes não acatem as exigências formuladas, o INPI pode recusar o registro ou averbação do contrato. Na lei que criou o INPI (Lei nº 5.648, de 11.12.1970), havia um dispositivo que parecia dar ao INPI essa prerrogativa, ao estabelecer que o INPI poderia adotar “com vistas ao desenvolvimento nacional, medidas capazes de acelerar e regular a transferência de tecnologia e de estabelecer melhores condições de negociação e utilização de patentes” (art. 2º, parágrafo único).

Com base neste dispositivo legal, em diversas ocasiões na década de 1980 o Poder Judiciário nacional considerou válido o dirigismo contratual exercido pelo INPI ao formular exigências a fim de subordinar a aprovação de contratos à modificação de cláusulas que haviam sido anteriormente livremente negociadas pelas partes.

Posteriormente, quando dos debates legislativos que resultaram na atual Lei da Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279, de 14.05.1996), percebeu-se a deliberada intenção do legislador em retirar essa prerrogativa do INPI, e o resultado foi a modificação do art. 2º da lei que criou o INPI, para suprimir o trecho acima transcrito, modificação esta introduzida pelo art. 240 da LPI.

Assim, desde 1996 há uma forte corrente doutrinária (à qual me filio, já tendo mencionado isto em diversos artigos) que entende que foi revogado o poder do INPI de recusar a aprovação de contratos de transferência de tecnologia, quando tal recusa se fundamenta apenas em uma concepção política ou discricionária do órgão, e não possua fundamento em uma norma legal concreta. Até mesmo por causa desta interpretação da LPI, ou talvez porque os tempos mudaram e a economia brasileira foi em grande parte liberalizada, o fato é que depois da edição da LPI as exigências do INPI se reduziram drasticamente. Se, no passado (entre 1970 e até fins da década de 1980), podia ser dito que o verdadeiro papel do INPI era dificultar ou impedir a aquisição de tecnologia do exterior, a partir de 1990 e principalmente nas últimas duas décadas, em que pese tenham sido mantidos os procedimentos burocráticos, a rigor o INPI deixou de ser um entrave real às empresas brasileiras e, em grande parte, as exigências formuladas pela autarquia nos processos de aprovação dos contratos passaram a se restringir a formalidades, normalmente superáveis pelas partes com a apresentação de um simples aditivo contratual.

Sem embargo, apesar da progressiva liberalização dos procedimentos do INPI, nos últimos 20 anos houve, ainda, algumas ocasiões em que o INPI decidiu intervir em cláusulas livremente negociadas pelas partes. Em junho de 2008 e abril de 2009, em dois processos distintos (apelações 2006.51.01.504157-8 e 2007.51.01.800906-6), o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) decidiu que tal intervenção era legítima, no primeiro, e ilegítima, no segundo (situação explicável porque diferentes desembargadores participaram de cada um desses julgamentos). Nesses dois casos discutia-se se o preço pela tecnologia (o royalty) pode, ou não, ser livremente contratado entre empresas não relacionadas. Ainda estamos aguardando o posicionamento do STJ em relação a esses dois casos.

Chegamos, enfim, à recente decisão do STJ que desejamos aqui comentar (REsp 1.200.528-RJ), que trata de contrato entre duas empresas do mesmo grupo, ou seja, uma empresa estrangeira e a sua subsidiária brasileira. Neste caso, segundo percebe-se pelas peças do processo, a subsidiária brasileira desejava a aprovação do INPI para pagar royalties pela licença de uso de marcas (1% sobre as vendas líquidas), quando já estava pagando royalties pela transferência de tecnologia (no caso, de 3%). O argumento da empresa era que, sendo 5% o limite máximo legal de dedutibilidade fiscal aplicável aos contratos entre empresas relacionadas, não haveria impedimento ao pagamento total, combinado, de 4% de royalties em favor da sua matriz estrangeira, e, portanto, seria ilegal a recusa do INPI em aprovar o contrato.

Neste ponto, vale lembrar que a nossa legislação cambial trata de forma diversa os pagamentos entre empresas independentes, de um lado, e as relacionadas, de outro. Com efeito para contratos entre as primeiras jamais houve um limite legal de valores que poderiam ser remetidos a título de pagamentos para o exterior, mas havia (e continua a haver), isto sim, apenas limites de dedutibilidade fiscal.

Por seu turno, para contratos entre empresas do mesmo grupo (como é o caso aqui comentado), havia uma proibição absoluta de remissibilidade entre 1962 e 1991, instituída pelo art. 14 da Lei nº 4.131, de 03.09.1962, a qual foi mitigada pelo parágrafo único do art. 50 da Lei nº 8.383, de 30.12.1991, o qual passou a permitir a remessa de royalties apenas nos estritos limites em que os pagamentos fossem também dedutíveis para o imposto de renda.

Para os leitores que não são versados na sistemática do imposto de renda farei uma breve digressão a respeito da dedutibilidade fiscal, apenas para fins didáticos, e desde já peço desculpas pela excessiva simplificação do tema. Entre os dois principais métodos de apuração do imposto de renda estão os métodos do lucro real e o do lucro presumido. Para apurar o imposto segundo o lucro presumido (método adotado pela maioria das empresas brasileiras) basta apurar o faturamento da empresa e, a partir deste, “presume-se” que o lucro é um determinado percentual e, uma vez calculado o lucro (sob esta metodologia de “presunção”), aplica-se a alíquota do imposto de renda e se calcula o valor do tributo devido. Por sua vez, na apuração segundo o lucro real ocorre um cálculo efetivo do lucro sujeito à tributação, deduzindo-se todos os custos e despesas da receita, até se chegar ao “lucro real”.

Empresas de maior porte são obrigadas a calcular o imposto segundo o lucro real e, para estas, é evidente que quanto maiores forem as despesas dedutíveis, menor será o imposto a pagar. Por isto, é muito importante para tais empresas que os seus desembolsos possam ser classificados como “despesas operacionais” e, portanto, dedutíveis na apuração do imposto; do contrário, a empresa terá sofrido o desembolso financeiro, mas não terá a respectiva redução do imposto devido.

Com relação às restrições à remissibilidade, por seu turno, vale lembrar que a referida Lei 4.131/62 era conhecida como “a lei da remessa de lucros”, e a mesma foi aprovada durante o governo João Goulart (considerado de esquerda, posteriormente interrompido pelo golpe civil-militar de 1964) a fim de restringir as remessas ao exterior de lucros das multinacionais instaladas no Brasil. Por esta lei, as multinacionais com operações no Brasil deveriam trazer “de graça” (ou seja, sem cobrar à parte por isto) o direito de uso de suas patentes, marcas e know-how. Esta foi a origem da proibição da remessa de royalties entre as subsidiárias instaladas no Brasil e as suas matrizes no exterior, que vigorou por quase 30 anos entre nós.

Retornando à nossa análise: viu-se, portanto, para contratos entre a subsidiária brasileira e a sua matriz no exterior o limite de remessa é também o limite de dedutibilidade. Errou, portanto o acórdão comentado ao afirmar que o art. 50 da Lei 8.383/91 trata apenas de dedutibilidade fiscal. A discussão, no caso concreto, dizia respeito a uma norma cambial que limita a remissibilidade de divisas, apenas tomando emprestado, para tanto, o critério da dedutibilidade fiscal.

Quanto à dedutibilidade, as leis fiscais efetivamente fixam para a dedutibilidade um teto máximo de 5% das vendas, mas a Portaria do Ministro da Fazenda nº 436, de 1958, já mencionada acima, estabeleceu limites menores, que variam de 1% a 5%, dependendo da área da indústria em que a tecnologia vá ser aplicada. No caso submetido ao STJ, aparentemente o INPI entendeu aplicável ao caso o limite de 2%, que o item 12 da referida portaria estabelece para os “artigos de higiene e cuidados pessoais”.

Mais grave ainda, quanto aos pagamentos por licença de uso de marcas, a mesma portaria cria uma restrição abusiva quando estabelece que é permitida a dedutibilidade do montante de 1% das vendas quando tal uso “não seja decorrente da utilização de patente, processo ou fórmula de fabricação” (Portaria 436/58, item “a”, II). Essa redação é de difícil compreensão, mas há décadas a interpretação a contrario sensu dada pelo INPI – ao meu ver uma interpretação possível, embora não a melhor – é a de que se uma empresa já está pagando por transferência de tecnologia, a licença da marca deve vir “de graça”, como um “brinde”, não sendo possível realizar pagamentos simultâneos por contratos que, a rigor, possuem natureza e objetos diversos.

Entendo que a discussão no STJ não deveria ter sido em torno dos poderes do INPI, mas sim quanto à vigência da Portaria 436/58. Neste ponto, parece-me, data venia, inadequada a afirmativa feita no acórdão no sentido de que estão mantidas as prerrogativas do INPI para “intervir no âmbito negocial de transferência de tecnologia”, pois, a rigor, não se cuidava, nos autos, de saber se o INPI poderia “intervir” no contrato, ou não, mas sim da verificação se a Portaria do Ministro da Fazenda (que não possui força de lei) poderia restringir a dedutibilidade fiscal para limites inferiores a 5% (este, lembre-se, é o limite máximo fixado em lei) tal como ela o fez. Esta análise da vigência da Portaria, ainda nos dias de hoje, deveria ser feita à luz do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT da Constituição de 1988, que revogou as normas exaradas pelo Poder Executivo com base em delegações de competência normativa feitas sob a égide da Constituição anterior.

Da mesma forma, parece-me desnecessária a afirmação do acórdão de que a modificação feita pela LPI de 1996 no art. 2º da lei que criou o INPI não implicou em uma restrição da capacidade de intervenção do INPI, pois, no caso concreto, em que a exigência foi formulada para cumprir as normas fiscais (ainda que se trate de norma infralegal, como uma Portaria), não é necessário reconhecer qualquer poder discricionário do INPI para se admitir que ele tinha o dever de agir da forma que fez, simplesmente aplicando uma norma cambial.

É um infortúnio para as empresas nacionais que o primeiro caso a ser decidido pelo STJ a respeito dessas questões não tenha sido um caso entre empresas não relacionadas (como seriam os dois casos acima mencionados, decididos pelo TRF-2 em 2008 e 2009), pois, aí sim, poder-se-ia testar adequadamente os limites do dirigismo contratual do INPI. No caso agora decidido pelo STJ, parece-me que o INPI estava apenas aplicando a legislação cambial e fiscal aplicável aos contratos entre empresas do mesmo grupo, a rigor sem qualquer discricionariedade ou juízo de valor, seguindo uma interpretação constante, que está inalterada há várias décadas, e obedecendo à letra expressa da malsinada Portaria 436/58.

Esperamos, portanto, que em ocasião futura o STJ tenha oportunidade de revisitar a questão, e que oxalá o faça sem prender-se ao precedente recém-prolatado o qual, como demonstramos acima, na realidade simplesmente limitou-se a coonestar o poder-dever do INPI de aplicar a Portaria 436/58 aos contratos entre empresas relacionadas, algo que me parece formalmente acertado, ao menos enquanto não ocorrer – como propugno – a declaração judicial da revogação integral da referida Portaria 436/58 pelo art. 25 do ADCT.

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