O direito de autor: dos primórdios à era digital (V)

Carlos Fernando Mathias de Souza

Professor titular da UnB e do UniCEUB, vice-presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil, membro fundador do Instituto dos Advogados do DF e efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros
E bem conhecida a dificuldade, em Direito, de regular as exceções. Por outro lado, a todo instante tem-se avanços tecnológicos a imporem novos procedimentos e condutas, em constantes desafios ao disciplinamento jurídico.
A lei n. 9610/98, isto é, a Lei Autoral em vigência, por exemplo, de modo oportuno (e a indicar uma preocupação de não ser atropelada pela defasagem ou superação) já fala em proteção às obras intelectuais que se expressem não só por qualquer meio, como também fixadas em qualquer suporte, seja tangível ou intangível, já conhecido ou que se venha inventar no futuro (v. artigo 7º).
No caso paradigmático de reprodução de obras intelectuais, para uso exclusivo de deficientes visuais, o Brasil, em coerência com sua ação, no sentido de melhor proteção, inseriu em seu ordenamento jurídico, entre as hipóteses em que não se constitui ofensa aos direitos autorais , a utilização em des- taque (sem fins comerciais), seja “mediante o sis- tema Braille ou com outro procedimento em qualquer suporte”.
Assim, exteriorizada uma obra intelectual em um suporte intangível (deixa-se de lado aqui a discussão de tratar-se efetivamente de um suporte), desde que sua reprodução seja para uso exclusivo de deficientes vi- suais, ela é livre, até porque não constitui a prática ofensa aos direitos autorais .
Por quê tal ênfase no intangível? É que a excepcionalidade não alcança somente obras re- produzidas pelo sistema Brille (o mais conhecido de
todos e concentrado no tato). Hoje, a ciência e a tecnologia têm ensejado experiências, com bastante êxito, quanto ao uso de obras intelectuais pelos deficientes visuais por meio de outros sentidos.
Por outro lado, a propósito da proteção internacional dos direitos autorais , foi aprovado em 28 de junho de 2013, no Marrocos, o Tratado de Marrakesh, objetivando facilitar o acesso às obras intelectuais por pessoas cegas ou portadoras de outra deficiência visual.
Não por acaso, o Brasil, que, já em fevereiro de 1979, apresentara proposta pioneira perante a OMPI, com o mesmo objetivo, foi o primeiro país a formular pro- posição que culminaria no referido tratado, junto a Paraguai, Equador, Argentina e México.
Para que o diploma internacional em comento pudesse entrar em vigor, eram necessárias vinte ratificações, o que veio a ocorrer em julho de 2016, com a manifestação do Canadá. Daí, resultou que o tratado passou a viger (noventa dias depois), isto é, aos trinta dias de setembro de 2016.
De passagem, registre-se que o Brasil entregou o depósito de ratificação em 11 de dezembro de 2015.
Tais registros são feitos, em face de que, por vezes, fala-se em um que outro tópico isolado sobre o tema, sem levar em conta, pelo menos, quatro pontos importantes (no mínimo sob o ponto de vista histórico), a saber: 1) a proposta do Brasil perante a OMPI (em fevereiro de 1979), inclusive com a presença no ato da Professora Dorina Nowill, sua grande inspiradora; 2) a sanção da lei n. 9.045 de 15/05/95, dispondo sobre providencias efetivas, objetivando a utilização e a reprodução de obras intelectuais por deficientes físicos; 3) o advento da lei n. 9.610, de 19/02/98 (que, em especial, ampliou a proteção aos deficientes vi- suais, nos referentes à reprodução, em seu artigo 46, I, a); 4) a lei n. 13.146, de 16/07/2015 (que, em seu artigo 46, em síntese, vedou que pudesse haver dificuldades no acesso aos deficientes, sob o pretexto de proteção à propriedade intelectual ; 5) o Tratado de Marrakesh (aprovado em 28/06/2013), que foi ratificado pelo Brasil de modo pioneiro.
Sobre a internalização da matéria no ordenamento positivo brasileiro haveria muito mais a destacar, co- mo, por exemplo, que tanto o próprio Tratado de Marrakesh, como a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, são diplomas, que a teor do parágrafo 3º da Constituição brasileira são equivalentes às emendas constitucionais.
Muitos trabalharam para que se atingissem resultados tão positivos (juristas, professores de direito, parlamentares, governantes, diplomatas e tantos outros). Se for possível personalizar o sucesso em uma só pessoa, sob a óptica dos interesses dos deficientes visuais, outra não seria que a Professora Dorina de Gouvea Nowill.
Por outra parte, veja-se, agora, que Lei 9.910/98, no seu artigo 115 (que contém várias disposições), mais precisamente in fine, após cuidar de revogações, prescreve que estão mantidas “em vigor as Leis ns. 6.533, de 24 de maio de 1978 e 6.615, de 16 de de- zembro de 1978”.
Tais diplomas tratam, respectivamente: a lei de número 6.53/78 (dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artista e de Técnico em Espetáculo de Diversões e dá outras providências) e a Lei 6.615/78 (dispõe sobre a regulamentação de radialista e, também, dá outras providências).
Abstraindo-se de maiores críticas, com relação à técnica legislativa, não parece que se deva deixar sem registro de que seja, ao menos, um pouco estranho (ou não usual) que um diploma, cujo o escopo foi o de alterar e atualizar a legislação sobre direitos autorais , tenha mantido, na sua integralidade, expressamente, duas leis de regulamentação profissional.
Mais uma vez, impõe-se um pouco de história para tentar-se melhor compreender o texto.
Com efeito, tanto a lei de regulamentação da pro- fissão de artistas e técnicos em espetáculos e di- versões, como a lei de regulamentação da profissão de radialista, cada qual, contém um dispositivo que passa pelos direitos autorais.
A lei n. 6.533/78 dispõe, em seu artigo 13, parágrafo único: “Não será permitida cessão ou promessa de cessão de direitos autorais e conexos decorrentes da proteção de serviços profissionais. Parágrafo único Os direitos autorais e conexos dos profissionais serão devidos em decorrência de cada exibição da obra.
A lei n. 6615/78, por sua vez, regulamentando a pro- fissão de radialista, contém, em essência, disposição praticamente, mutatis mutandis, com o mesmo teor, em seu artigo 17 e parágrafo único: “Não será permitida a cessão ou promessa de cessão dos direitos autorais e dos que lhes são conexos, de que trata a lei n. 5.988, de 14 de dezembro de 1973, decorrentes da proteção dos serviços profissionais. Parágrafo único Os direitos autorais e conexos dos profissionais serão devidos em decorrência de cada exibição da obra. ” O que houve, de fato, é que estava sendo embutido no projeto do qual resultou a Lei 9.610/98, uma revogação de tais dispositivos referentes às cessões de direitos autorais, como previstos em suas respectivas leis de regulamentação profissional.
Denunciado o fato, houve grandes protestos, em especial, por parte de artistas expressivos, de onde ad- veio um recuo no legislativo. Houve uma grande pressão, de um lado artistas e radialistas, de outro, poderosos organismos de radiodifusão.
No Senado, os artistas conseguiram afastar a ameaça, com a exclusão dos dispositivos que lhes seriam prejudiciais.
Surgiu daí uma solução “a toque de caixa”, diga-se assim, e com a fórmula em destaque, contida no artigo 115 da L. 9610/98.
Com a pressa,contudo, remanesceu um trecho intercalado no artigo 92 da lei em referência, que, mui- to embora tratando de direitos morais, garantia aos interpretes “inclusive depois da cessão dos direitos patrimoniais”. É evidente, contudo, que, por efeito de interpretação, inclusive ab-rogante, tal parte do texto tornou-se inócua.
Assinale-se, por bastante oportuno, que tanto o artigo 13 em seu parágrafo único da Lei 6.533/78, quanto o artigo 17 e parágrafo único da Lei 6.615/78 foram questionados de inconstitucionalidade, o que o Su- premo Tribunal Federal, por decisão unânime de seu pleno, rejeitou, ao concluir, em síntese, que o impedimento da cessão de direitos em tela, ao contrário de se constituir em uma restrição aos titulares de direito, expressam norma de sua proteção.

Fonte: Correio Braziliense