Novo CPC autoriza execução de sentença judicial meramente declaratória

Quando o Código de Processo Civil de 1973 foi promulgado, a regra, no Brasil, era de que as ações de prestação não eram sincréticas, ou seja, caso alguém propusesse uma ação de prestação, ela obteria somente o reconhecimento de um direito[1]. Era uma ação puramente de conhecimento. Se o credor quisesse executar a decisão oriunda dessa ação, ele deveria propor uma nova ação autônoma de execução.

Por essa razão, em sua redação original, o artigo 584 previa, dentre os títulos executivos judiciais, “a sentença condenatória proferida no processo civil” (inciso I).

Mas o diploma processual começou a sofrer reformas tendentes a sincretizar o processo, para torná-lo menos burocrático e mais ágil. Assim, em 1994, todas as ações de fazer ou não fazer tornaram-se sincréticas, virando regra o que era excepcional. Em 2002, as ações de dar coisa diversa de dinheiro também foram sincretizadas. E, finalmente, com a Lei 11.232/05, o legislador sincretizou a última ação de prestação que restava: a de prestação pecuniária.

A referida lei revogou o artigo 584, e incluiu o artigo 475-N, cujo inciso I previa, como título executivo judicial, “a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”. Dessa forma, percebe-se que o legislador ampliou o conceito de sentença judicial executável.

Assim, até a reforma promovida pela Lei 11.232/05, debateu-se acerca da possibilidade de sentenças que não fossem expressamente condenatórias serem executadas, gozando da natureza de título executivo judicial, em especial, as sentenças meramente declaratórias.

O atual ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki já defendia, também antes da reforma da Lei 11.232/05, a exequibilidade da sentença meramente declaratória, afirmando que

“pode-se sustentar que, em nosso atual sistema, quando a sentença, proferida em ação declaratória, trouxer definição de certeza a respeito, não apenas da existência da relação jurídica, mas também da exigibilidade da prestação devida, não haverá razão alguma, lógica ou jurídica, para negar-lhe imediata executividade”[2].

No mesmo sentido, já escorado na referida reforma, Humberto Theodoro:

“ao descrever o título executivo judicial básico, o art. 475-N, redigido pela Lei nº 11.232, de 22.12.2005, não mais o restringe à sentença condenatória civil, pois considera como tal toda ‘sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia’. Alargou-se, dessa forma, a força executiva das sentenças para além dos tradicionais julgados de condenação, acolhendo corrente doutrinária e jurisprudencial que, mesmo antes da reforma do CPC, já vinha reconhecendo possibilidade, em certos casos, de instaurar execução por quantia certa também com base em sentenças declaratórias”[3].

Por outro lado, os Nery defendiam o contrário:

“(…) na sentença meramente declaratória (CPC 4º) não há imposição de obrigação nem de sanção, traço caracterizador da eficácia executiva da sentença, não contém aptidão para impor a prática de atos de execução, não contém força executiva (…). Não se pode conferir a essa sentença de mera declaração uma eficácia não pedida pelo autor da ação (eficácia executiva), impondo-se ao réu conseqüência diversa daquela para o qual fora citado para defender (…). O argumento de que seria desperdício de tempo e de atividade jurisdicional mover-se ação condenatória depois de ter havido, em ação declaratória, reconhecimento de obrigação de fazer, não fazer ou de pagar quantia (…) não pode ser prestigiado porque foi o autor da ação declaratória quem assim o quis (…). O processo civil é dispositivo, cabendo o autor delimitar a lide e, por conseqüência, o conteúdo e a eficácia da sentença. Economia e celeridade processual têm como limite as regras do devido processo legal e dos sistemas da CF e do CPC”[4].

Mas o Superior Tribunal de Justiça adotava a primeira corrente doutrinária, exigindo apenas a existência de certeza e exigibilidade. Exarou a corte, no leading case REsp 588.202, 1ª Turma, relator ministro Teori Zavascki, julgado em 10 de fevereiro de 2004:

“Tem eficácia executiva a sentença declaratória que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não há razão alguma, lógica ou jurídica, para submetê-la, antes da execução, a um segundo juízo de certificação, até porque a nova sentença não poderia chegar a resultado diferente do da anterior, sob pena de comprometimento da garantia da coisa julgada, assegurada constitucionalmente. E instaurar um processo de cognição sem oferecer às partes e ao juiz outra alternativa de resultado que não um, já prefixado, representaria atividade meramente burocrática e desnecessária, que poderia receber qualquer outro qualificativo, menos o de jurisdicional.”

E mais recentemente, por sua Corte Especial, no REsp 1.324.152, relator ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 4 de maio de 2016, proferido sob o rito dos recursos repetitivos, firmou a seguinte tese:

“A sentença, qualquer que seja sua natureza, de procedência ou improcedência do pedido, constitui título executivo judicial, desde que estabeleça obrigação de pagar quantia, de fazer, não fazer ou entregar coisa, admitida sua prévia liquidação e execução nos próprios autos”.

Acrescente-se que eventual iliquidez não impedia a exequibilidade da sentença meramente declaratória, pois bastaria a liquidação prévia. O que importava, portanto, não era a classificação dada à sentença, mas o seu conteúdo.

Ocorre que o Novo CPC parece ter reaberto o debate. O artigo 515, que elenca os títulos executivos judiciais, consagrou, em seu inciso I: “as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”.

Se, por um lado, ampliou o escopo do CPC/73 ao atribuir exequibilidade não só às sentenças em geral, mas também às decisões judiciais, por outro, pode parecer ter restringido o alcance de tais decisões, na medida em que estipulou a necessidade de que seja reconhecida a exigibilidade da obrigação, e não apenas a sua existência, como fazia o revogado artigo 475-N, I.

Os Nery mantêm seu posicionamento com base nos mesmos argumentos declinados à época da Lei 11.232[5]. E Scarpinella entende faltar exequibilidade à sentença meramente declaratória[6]. Contudo, ousamos discordar desse entendimento.

Primeiro, porque antes do Novo CPC, já nos filiávamos à corrente adotada pelo STJ, pois, realmente, a exigência de propositura de nova demanda seria uma perda de tempo já que os requisitos para a exequibilidade já teriam sido preenchidos com a primeira, de modo que tal exigência violaria o princípio da razoável duração do processo e da efetividade da prestação jurisdicional. Além disso, a nova sentença não poderia contrariar a anterior por força do efeito negativo da coisa julgada, realçando a sua inutilidade.

E, com todo o respeito à corrente contrária, nos parece configurar um excessivo formalismo não reconhecer à sentença declaratória aptidão executiva por não haver imposição de obrigação ou de sanção. Essa imposição pode ser implícita, derivando tão somente do reconhecimento da dívida e sua existência[7]. E a sanção pode decorrer do regramento do cumprimento de sentença, com a multa de 10%, no caso da sentença que reconhece obrigação de pagar quantia certa (artigo 523, parágrafo 1º, do Novo CPC), também aplicável às de fazer ou não fazer (artigo 536, parágrafo 4º) e às de entregar coisa (artigo 538, parágrafo 3º).

Note-se que o referido artigo 523, parágrafo 1º, do Novo CPC equivale ao artigo 475-J do CPC/73, que, por sua vez, não continha previsão expressa a respeito da sua aplicabilidade às sentenças que contivessem obrigação diversa da de pagar quantia certa, o que reforça a tese de que o legislador de 2015 buscou uniformizar a questão, atribuindo exequibilidade a toda espécie de sentença que contivesse os elementos necessários à execução de uma obrigação.

Além disso, por mais que o processo civil seja pautado pelo princípio dispositivo, este não é absoluto. Não há porque impedir o credor de usufruir de determinada posição jurídica por ter pleiteado uma providência judicial mais restrita que outra, sendo esta decorrência lógica daquela, especialmente quando tal proceder não viola o direito de defesa[8].

Nesse sentido, não vemos como o réu seria prejudicado se, ao se defender de um pedido meramente declaratório, se visse passível de um cumprimento de sentença. Ora, ele não se defende apenas do pedido, mas também e, principalmente, da causa de pedir. Inclusive, em razão da força preclusiva da coisa julgada e do princípio da eventualidade, não poderia, em regra, o réu aventar, na segunda demanda (condenatória), alegação que seria cabível na primeira (meramente declaratória) (artigo 508 do Novo CPC)[9].

E, em segundo lugar, a substituição do termo existência por exigibilidade é fruto de maior tecnicidade do legislador – e não de alteração de entendimento –, pois, por óbvio, só se pode executar o que se pode exigir, e só se pode exigir o que existe. Assim, a simples existência da obrigação não implica que possa ser cobrada pelo credor.

Mas isso não significa que a decisão meramente declaratória não possa vir a ser executada: basta que contenha os elementos da obrigação jurídica e que seja esta exigível.

É dizer, declarada apenas a existência da dívida, a decisão que a contém não poderá ser executada por não ser exigível, não por ser meramente declaratória.

Desse modo, perfeitamente possível que, diante de uma situação de incerteza, pleiteie o autor a mera declaração da obrigação, e, quando ela se tornar exigível, caso o devedor não a cumpra espontaneamente, bastará que inicie o cumprimento de sentença, dispensada a propositura de uma nova ação de conhecimento, dessa vez com cunho condenatório.

Em conclusão, entendemos que, presentes a certeza e a exigibilidade da obrigação, e garantido o contraditório e a ampla defesa do executado, razão não há para se recusar exequibilidade à sentença judicial meramente declaratória.

Daniel Amorim parece adotar essa posição, na medida em que eventualmente admite a exequibilidade da sentença meramente declaratória, em homenagem à economia processual, mas apenas nos casos em que isso não implique violação à ampla defesa e aocontraditório[10], conforme no exemplo anteriormente citado [nota 9].

Note-se que essa posição tem o mérito de não generalizar, nem pela exequibilidade sem exceção, nem pela total ineficácia executiva da sentença meramente declaratória, razão pela qual nos parece a posição mais acertada[11].

E a doutrina atual parece seguir esse entendimento[12].

Acrescente-se que, conquanto no mencionado REsp 1.324.152 tenha o STJ se pronunciado sobre a questão sob a ótica do CPC/73, em seu voto, o relator ministro Salomão parece ter adotado o posicionamento ora defendido, ao, depois de enfrentar a polêmica doutrinária encerrada com a reforma levada a cabo pela Lei 11.232/05, entender que o artigo 515, I, do Novo CPC reproduziu o artigo 475-N, I, sem adentrar à distinção semântica aqui debatida, bem como por reproduzir, tendo ciência da redação do Novo CPC, o mesmo raciocínio que levou a corte a decidir o REsp 588.202.