Nota sobre os efeitos da publicação da anotação de cessão de registro de marca em face das inconveniências do “Backlog” do INPI

Autores: Gabriel Francisco Leonardos e Rafael Salomão Safe Romano Aguillar

O presente trabalho defende que o artigo 137 da Lei da Propriedade Industrial, que estabelece que as anotações de cessão de titularidade de registros de marca produzem efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação, seja interpretado no sentido de que os efeitos da publicação retroagem à data de protocolo do requerimento de anotação da cessão.

This paper proposes an interpretation of section 137 of the Brazilian Industrial Property Act according to which the effects of the publication, by the Trademark Office, of the assignment of trademarks registrations shall retroact to the date when the parties originally filed the request to record the assignment.

Registro de marca. Cessão. Efeitos da anotação.

Trademark registration. Assignment. Effects of recordal.

 I – Introdução

O artigo 136 da Lei da Propriedade Industrial (lei n°. 9.279 de 1996 – LPI) estabelece que compete ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) anotar, dentre outras situações, a cessão, isto é, a transferência de titularidade de registros de marca (inciso I). Ato contínuo, o art. 137 da LPI dispõe que “as anotações produzirão efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação”.

Como é de conhecimento geral, o INPI padece de formidável “backlog”, cujas consequências são nefastas para a atração de investimentos em inovação e para o desenvolvimento do país. Segundo dados do próprio INPI, divulgados em dezembro de 2014, nada menos que 67% (sessenta e sete por cento) dos pedidos de patente demoram mais de 10 (dez) anos para serem concedidos, ao passo que 90% (noventa por cento) dos pedidos de registro de marca demoram mais de 03 (três) anos para a concessão[1].

Essa situação calamitosa da autarquia vem sendo denunciada pela imprensa. Assim, por exemplo, o jornal Valor Econômico noticiou, em 09.07.2015, que o INPI “vive hoje uma complicada situação: em instalações provisórias, funciona sem presidente e sem pessoal suficiente para a análise dos pedidos de registro de patentes. Solicitações se acumulam, arrastando o tempo para uma resposta do órgão, fato que tem desestimulado investimentos no país, segundo especialistas[2]. E prossegue a reportagem: “O tempo médio de espera quase dobrou em dez anos, segundo estudo encomendado pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Em 2003, a demora era de pouco mais de seis anos. Em 2008, subiu para oito anos e, em 2013, alcançou 11 anos. E dependendo da área pode ser ainda maior. Pedidos do setor de telecomunicações, por exemplo, levaram mais de 14 anos para serem respondidos[3].

No que diz respeito ao objeto deste artigo, cumpre sublinhar que o backlog do INPI não se limita a exames de pedidos de patente. Com efeito, o atraso dos procedimentos no INPI atinge também as providências mais simples, como é justamente o caso da mera anotação da cessão de titularidade de um registro de marca. Para realizar esse simples exame formal, o INPI leva cerca de 03 (três) anos.

Evidentemente, ao se interpretar a Lei, esses dados aterradores da morosidade administrativa não podem ser ignorados. Por essa razão, o intuito deste artigo é explicitar que os efeitos perante terceiros gerados pela publicação da anotação de cessão, a que alude o art. 137 da LPI, retroagem à data de protocolo do requerimento de anotação da transferência de titularidade do registro. Na sequência, a fim de demonstrar a relevância prática da tese, expor-se-á situações concretas nas quais o entendimento contrário prejudicaria a segurança jurídica e as partes da cessão, cuja boa-fé, naturalmente, presume-se.

II – Sobre os efeitos da anotação da cessão de registro de marca

Conforme antecipado na introdução supra, o art. 137 da LPI estabelece que “as anotações produzirão efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação”. Com base na sistemática de nosso ordenamento jurídico, mas sobretudo em vista da razão prática representada pela morosidade administrativa do INPI, deve-se interpretar que os efeitos produzidos pela aludida publicação retroagem à data de protocolo do requerimento de anotação, o que se revela particularmente importante no caso de anotação da cessão de titularidade de registros de marca.

Para encetar o raciocínio que conduz a essa conclusão, noticiamos inicialmente, para o eventual leitor não familiarizado com a temática, que a “publicação” prevista na Lei é a aquela realizada pelo órgão oficial do INPI, a hebdomadária Revista da Propriedade Industrial – RPI.

Em segundo lugar, para se apreender o alcance do art. 137, da LPI, ressaltamos que deve ser compreendido o significado do termo “anotação” nele utilizado. Frise-se, preliminarmente, que “anotação” é o termo usado pela própria Lei ao se referir à cessão de titularidade, i.e., à transferência de registro marcário (cf. art. 136 da LPI), ao passo que ao tratar das licenças de uso a lei utiliza o termo “averbação” (cf. art. 140 da LPI).

Em que pese haver, por vezes, a utilização indistinta de um termo (“anotação”) ou outro (“averbação”), o rigor terminológico exige que se traga para esta análise a circunstância de que a realização de uma “anotação” é algo singelo, tanto assim que o INPI não faz mais que analisar requisitos formais ao “anotar” a transferência diante de um contrato de transferência, ao passo que a autarquia realiza uma profunda análise de mérito dos contratos de licença que lhe são submetidos à averbação. A anotação não é uma decisão (de deferimento ou de indeferimento) de processo administrativo de mérito.

A que se resume, pois, a atividade administrativa da “anotação”? Basicamente à realização da verificação se: (a) o cedente é de fato o titular do registro; (b) o registro sendo transferido está em vigor; (c) se o adquirente possui em seu objeto social a previsão do exercício da atividade para a qual a marca está registrada; (d) se as partes do contrato estão adequadamente representadas de acordo o previsto em seus respecticos atos societários; e (e) se a cedente possui outros registros para marcas semelhantes e produtos ou serviços idênticos, caso em que os registros não transferidos devem ser cancelados por força do art. 135 da LPI, a fim de se evitar que coexistam no cadastro de marcas registradas direitos conflitantes em nome de titulares diferentes.

A regulamentação do INPI a respeito da atividade de “anotação de transferência” deixa claro que sua atividade é meramente burocrática-formal:

Resolução INPI nº 142, de 27.11.2014 (“Manual de Marcas”):

 

8.1 Transferência por cessão

 A transferência por cessão aplica-se aos casos em que uma empresa, denominada cedente, transfere os direitos sobre as marcas por meio de um instrumento de cessão a outra empresa, denominada cessionária.

 A transferência por cessão obedece a duas condições estabelecidas em lei:

  1. a) A cessionária, por força do artigo 134 da LPI, deve atender ao requisito de legitimidade do requerente estabelecido no art. 128 da LPI. Desta forma, as empresas envolvidas na transferência por cessão devem possuir atividade compatível com o produto/serviço que a marca visa a assinalar, de modo direto ou através de empresas que controlem direta ou indiretamente, sob pena de ter o pedido de anotação de transferência indeferido.

 Art. 134. O pedido de registro e o registro poderão ser cedidos, desde que o cessionário atenda aos requisitos legais para requerer tal registro.

 Informações específicas sobre a apreciação da legitimidade do requerente de registro de marca podem ser obtidas no item 5.5 Análise da legitimidade do requerente.

  1. b) Todos os pedidos e registros de marca da cedente devem estar relacionados no documento de cessão, tendo em vista o estabelecido no artigo 135 da LPI, sob pena de os pedidos e registros de marca não relacionados serem, respectivamente, arquivados e cancelados. 

Para a anotação da cessão de direitos, são exigidos os seguintes documentos: 

  • Requerimento de transferência, devidamente preenchido com os dados do cessionário;
  • Comprovante do pagamento da retribuição correspondente;
  • Instrumento comprobatório da cessão, que deverá conter a qualificação completa do cedente e do cessionário, com os poderes de representação dos signatários do documento de cessão e suas respectivas assinaturas, o número do pedido ou do registro, a marca cedida e a data na qual foi firmado o documento de cessão;
  • Instrumento comprobatório da cessão de prioridade, se for o caso;
  • Procuração do cessionário, se for o caso;
  • Tradução simples dos documentos em língua estrangeira, dispensada a legalização consular destes, incluindo o documento de prioridade;

 A transferência de pedido ou registro de marca por cessão deve ser solicitada mediante protocolo de petição de Anotação de transferência de titular, código 349.

 Observação: no caso de pedidos ainda pendentes de exame de mérito, o cessionário não estará dispensado de fornecer esclarecimentos quanto à atividade do depositante da marca, assim como de cumprir outras exigências que se apliquem ao pedido de registro de marca em questão.

Com efeito, por exemplo, em nada pode se comparar uma simples “anotação” de transferência de registro, de um lado, à concessão de um “registro” marcário, de outro, por exemplo, pois neste último caso é que se exige um exame longo e circunstanciado pela Administração Pública. Isso se explica porque a concessão de um “registro” cria um novo direito de propriedade, ao passo que a realização de uma “anotação” é algo que – em tese – poderia ser feito de forma instantânea pelo funcionário público no balcão de atendimento.

Em outras palavras: o registro de marca, uma vez concedido pelo INPI, pertence, como é óbvio, ao seu titular. Nesse contexto, relembre-se que o art. 5º, da LPI[4], estabelece que os direitos de propriedade industrial são considerados bens móveis para os efeitos legais e o art. 1.228, caput, do Código Civil[5], é categórico ao afirmar que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa.

Concedido o registro da marca e estando o titular adimplente com as taxas de renovação, o INPI não possui absolutamente nenhuma ingerência sobre o registro. O proprietário do registro pode dele livremente dispor, transferindo-o a terceiros, sem que caiba à autarquia qualquer discricionariedade ou interferência nesse processo. A Lei não confere ao INPI qualquer prerrogativa de exame do mérito da contratação e não há, portanto, decisão de mérito do INPI ou verdadeiro processo administrativo para a cessão de titularidade de uma marca.

Em resumo, a cessão da titularidade não depende de ato decisório do INPI.

Pois bem. Uma vez definido com clareza o limitado papel do INPI na cessão de um registro de marca, resta determinar quais são os efeitos produzidos pela anotação da cessão, que torna pública a transferência de titularidade de um registro, o que se dá, como é sabido, por meio de publicação da anotação na RPI.

Retornemos, então, ao art. 137, da LPI, que estabelece que as “anotações produzirão efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação”. Para interpretar este dispositivo, é de grande valia o levantamento histórico da legislação anterior.

De fato, o saudoso professor Denis Borges Barbosa relembra que, na vigência do Código da Propriedade Industrial de 1945 (Decreto-Lei n°. 7.903/1945 – CPI/45), “até o pronunciamento da autoridade administrativa, averbando o contranto, ele era válido, mas não eficaz. (…) Daí em diante, o contrato adquiria eficácia; entenda-se eficácia absoluta, entre as partes e perante terceiros[6].

O mencionado CPI/45 estabelecia em seu art. 144, § 1º que “a transferência ou alienação só produzirá efeito depois de anotada no Departamento” (a referência é feita ao antigo “Departamento Nacional de Propriedade Industrial”, antecessor do atual INPI). Ou seja, o negócio jurídico era plenamente ineficaz, por expressa determinação legal, enquanto não fosse ultimada a anotação.

A postura do código de 1945, pelo qual o contrato não produzia nenhum efeito antes da averbação, foi completamente alterada pelo Código da Propriedade Industrial de 1971 (Lei n°. 5.772/1971 – CPI/71), que introduziu a sistemática hodiernamente vigente na LPI de 1996, segundo a qual o contrato é válido e eficaz entre as partes, mas produz efeitos perante terceiros apenas após a publicação da cessão na RPI[7].

A intenção da Lei é clara e se torna particularmente evidente a partir da alteração da norma do CPC/45 para o CPI/71. Almejou o legislador pura e simplesmente publicizar a cessão de titularidade; ao contrário da normativa revogada, em que somente se produziam quaisquer efeitos após a anotação.

O ilustre mestre italiano Emilio Betti lecionava que se qualifica “como simplesmente ineficaz, o negócio em que estejam em ordem os elementos essenciais e os pressupostos de validade, quando, no entanto, obste à sua eficácia uma circunstância de facto a ele extrínseca”. E acrescentava: “a invalidade é o tratamento que corresponde a uma carência intrínseca do negócio, no seu conteúdo preceptivo; a ineficácia, pelo contrário, apresenta-se como a resposta mais adequada a um impedimento de carácter extrínseco[8].

Dentre essas circunstâncias extrínsecas ao negócio jurídico, pode-se listar “as medidas de publicidade em geral”, que “enquadram-se entre os fatores de atribuição de eficácia mais extensa[9], conforme lição de Antônio Junqueira de Azevedo em estudo clássico sobre as três dimensões do negócio jurídico.

Em outras palavras, segundo o notável professor da Universidade de São Paulo (USP), os atos tendentes a conferir publicidade aos negócios jurídicos não os tornam eficazes, mas apenas estendem o grau de eficácia dos mesmos. In verbis:

Os fatores de atribuição de eficácia mais extensa, que são aqueles indispensáveis para que um negócio, já com plena eficácia, inclusive produzindo exatamente os efeitos visados, dilata seu campo de atuação, tornando-se oponível a terceiros ou, até mesmo, erga omnes.[10]

Sobre a plena validade dos contratos de transferência independentemente da atuação do INPI, já se manifestou o Tribunal de Justiça do Ceará (que incorreu na impropriedade não incomum, já exposta acima, de utilizar o termo “averbação” quando, a rigor, estava tratando de “anotação”):

Ementa. Ação Ordinária de Abstenção de Uso indevido de marca. Ajuizamento por empresa que não teve o contrato de Cessão averbado pelo inpi, mas que exerce todos os direitos ali garantidos. Preliminar de ilegitimidade ativa afastada.

(…)

A ausência de averbação no INPI não afasta a validade do contrato de cessão, a um porque, conforme afirma o recorrido, já existe pedido de averbação junto ao INPI, que só não se concretizou até o momento em face dos trâmites burocráticos que lhe são inerentes, e a dois porque o apelado já exerce todos os direitos que lhe foram atribuídos no contrato de cessão, sendo, dessa forma, de seu maior interesse a preservação de sua marca.

 (Apelação Cível n°. 2005.0013.0837-0/1. 2ª Câmara Cível do TJ CE. Rel. Des. João de Deus Barros Bringel. Julgado em 14.01.2009. Grifou-se)

Conforme já ressaltado, a anotação é uma atividade burocrática singela, que, em tese, poderia ser realizada de forma imediata e instantânea. Contudo, apesar do limitado âmbito de atuação do INPI nessa matéria, é fato notório que a autarquia não é eficiente no cumprimento de seus encargos legais.

Conforme já noticiado em nossa introdução, o célebre backlog da autarquia não se limita aos exames de pedidos de patente. Ao revés, ele atinge, outrossim, as providências mais simples, como é justamente o caso da mera anotação da cessão de titularidade de um registro de marca. Para realizar esse simples exame formal, atualmente, o INPI leva cerca de 03 (três) anos!

Evidentemente, as consequências nocivas da letargia da Administração Pública não podem recair no administrado. Como leciona o estimado professor Denis Borges Barbosa:

Assim, pelo longo tempo que o INPI costuma levar para proceder ao ato registral, a posse indireta se constitui em favor do adquirente, que ainda não obteve o título por culpa das doenças crônicas da Administração. De outro lado, mantem-se a posse direta com o que foi – e prolonga-se como sendo em aparência –, titular do registro, enquanto o Choloepus didactylus[11] administrativo se move a custo[12].

A letargia ou a desídia da Administração Pública não podem, portanto, afetar negativamente negócios jurídicos lícitos, válidos e eficazes, minando severavemente, destarte, a segurança jurídica.

Por esse motivo, a melhor interpretação é a de que a data do protocolo perante o INPI do requerimento da anotação é a que deve ser considerada para fins de determinação do momento de transmissão da propriedade, pois a ulterior publicação da anotação deve retroagir em seus efeitos à data em que foi apresentado tal requerimento, sob pena de punir-se o jurisdicionado pela ineficiência da Administração Pública.

Neste compasso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se manifestou sobre a questão, aduzindo que a ausência de publicação da anotação da transferência pelo INPI não influencia no direito do cessionário se o terceiro (um contrafator, v. g.) estava ciente (por meio de uma notificação extrajudicial, e. g.) da operação:

Propriedade Industrial. Marca. Cessão da titularidade. A anotação e publicação da transferência de titularidade da marca junto ao INPI destina-se a produzir efeitos perante terceiros. Agravante que já tinha ciência da transferência através de notificação extrajudicial que lhe foi dirigida. Publicação que, de qualquer forma, foi realizada. Procedimento de nulidade do registro da marca ou da sua cessão que não impede a cessionária da mesma de promover a sua defesa.

 (Agravo de Instrumento n°. 0010765-55.2005.8.19.0000. 17ª Câmara Cível do TJ RJ. Rel. Des. Fabricio Paulo Bagueira Bandeira Filho. Julgado em 05.10.2005.)

Afirmou ainda o relator desse Agravo de Instrumento:

 A rigor, tal publicação destina-se a produzir efeitos perante terceiros, o que não era o caso dos agravantes, já que eles tinham ciência da transferência da marca, conforme notificação extrajudicial que lhes dirigiu a agravada (fls. 122/126).

 Como quer que seja, a agravada comprovou a publicação exigida (fls.305/308), pelo que a liminar foi restaurada pela decisão agravada.

Note-se que não há o menor problema em se retroagir os efeitos da publicação à data do protocolo, na medida em que o ato em questão do INPI é uma simples anotação, conforme já havíamos ressaltado. Fosse uma decisão administrativa de mérito que afetaria negócios jurídicos passados, talvez a conclusão fosse diversa, mas esse não é o caso. Houve simples anotação, cuja publicação é demasiado retardada em decorrência de problemas crônicos da Administração Pública.

Nesse sentido, já apontou farta jurisprudência.

No Agravo de Instrumento n°. 990.10.394521-2, julgado em 18.10.2010, a 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a decisão de 1ª instância que indeferiu a penhora de registros de marca do agravado, uma vez que, apesar de a cessão não ter sido anotada pelo INPI, não foi demonstrada a má-fé do cedente e do cessionário. Destaque para a ementa e para os seguintes excertos do voto do Des. Melo Bueno:

 AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de título judicial – Penhora de marca – Impossibilidade ante a cessão da titularidade marca ter ocorrido um ano antes da data do acordo que embasa a execução e dois antes da propositura da ação de execução – Má-fé não comprovada – Decisão mantida – Recurso desprovido.

(…)

 O termo de acordo que embasa a execução foi firmado em 07/08/2007 (fls. 50), a cópia do contrato de cessão e transferência dos direitos sobre o registro da marca Depilsan possui data de 12/06/2006 e a firma do Ricardo Samu & Cia Ltda foi reconhecida em cartório em 17/07/2006 (fls. 272). Assim, o contrato de cessão de direitos sobre a marca foi formalizado muito antes do ajuizamento da ação de execução proposta em 15/04/2008, inclusive antes do termo de acordo assinado entre as partes (fls. 50). Portanto, não se pode deferir a penhora sobre marca cuja titularidade sobre o registro não mais pertence ao agravado Ricardo Samu & Cia Ltda.

 A despeito das exigências do INPI para a viabilização da anotação quanto à cessão da titularidade da marca “Depilsan” conforme se constata de fls. 18/9, não há como se desconsiderar que a cessão da titularidade da marca ocorreu quase 1 (um) antes da data em que foi firmado o acordo que embasa a presente execução.

 Para se considerar um ato ineficaz por fraude à execução, deve-se obedecer aos requisitos do art. 593, caput, e II, do CPC, quais sejam: demanda de caráter condenatório ou executivo contra o devedor; e ciência do devedor desta demanda à época da alienação ou oneração de seus bens, para não frustrar a satisfação do credor por insolvência patrimonial do devedor.

 (Agravo de Instrumento n°. 990.10.394521-2. 35ª Câmara de Direito Privado do TJ SP. Rel. Des. Melo Bueno. Julgado em 18.10.2010. Grifou-se)

 Já na Apelação de nº 0197639-03.2012.8.26.0100, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal bandeirante reconheceu corretamente que a publicação da anotação retroage à data de protocolo. Confira-se os destaques:

EMBARGOS DE TERCEIRO. Penhora de marcas. Instrumento de cessão do direito de uso de marcas anterior à data do ajuizamento da execução. Protocolo do instrumento de cessão no INPI também em data anterior à distribuição da execução. Averbação da cessão que se situa no plano da eficácia dos atos e negócios jurídicos e cujos efeitos retroagem à data do protocolo. Fraude à execução não caracterizada. Má-fé da cessionária não demonstrada. Aplicação da Súmula nº 375 do STJ. Precedentes da jurisprudência. Embargos de terceiro. Procedentes. APELAÇÃO PROVIDA.

(…)

 O instrumento de cessão e seu protocolo no IPNI ocorreram antes do ajuizamento da execução, de sorte que não há que se falar em fraude à execução, não incidindo no caso concreto a norma do artigo 593, II do Código de Processo Civil.

 Não há nos autos notícia da data em que ocorreu a averbação do instrumento de cessão no IPNI. Mas o dado é irrelevante, pois a averbação situa-se no plano da eficácia dos atos e negócios jurídicos e seus efeitos retroagem à data do protocolo no IPNI.

(Apelação nº 0197639-03.2012.8.26.0100. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ SP. Julgado em 20.03.2014. Rel. Des. Alexandre Marcondes)

E ainda em outra ocasião, o Tribunal de São Paulo estatuiu:

EMBARGOS DE TERCEIRO – Execução Fiscal – Penhora de Marca – Fraude à execução – Inocorrência – Cessão de titularidade da marca, através de acordo judicial, entre a embargante e a executada – Averbação de transferência não registrada perante o INPI – Súmula nº. 84 do STJ – Outrossim, a cessão de titularidade da marca ocorreu, em época em que não havia qualquer registro de penhora no órgão competente – Tratando-se de terceiro de boa-fé, não se pode subsistir a penhora da marca, cabendo ao credor provar que a adquirente sabia da existência da restrição judicial que recaía sobre o bem – Sentença mantida – Recursos desprovidos.

 (Apelação nº 0120969-89.2010.8.26.0100. 12ª Câmara de Direito Público do TJ SP. Julgado em 18.09.2013. Rel. Des. Wanderley José Federighi. Grifamos)

E o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já acolhia a tese em precedente histórico:

PROPRIEDADE INDUSTRIAL. Marca. Titularidade. Transferência.

 A falta de registro da transferência não impede que o cessionário defenda seu direito ao uso exclusivo.

(…)

O cessionário é o novo titular e não se o pode privar do exercício dos direitos daí decorrentes. Despropositado seria conservar o cedente a titularidade para isso. A eficácia em relação a terceiros refere-se a hipóteses diversas como, por exemplo, uma nova cessão, para outra pessoa, antes de anotada a transferência.

 (Recurso Especial n°. 36.102-8/RJ. Terceira Turma do STJ. Rel. Min. Eduardo Ribeiro. Julgado em 28.02.1998)

Mutatis mutandis, é também notório que essa mesma argumentação tem sido empregada para o caso de penhora de veículo automotor (um bem móvel, tal e qual o são as marcas registradas) alienado de boa-fé antes de penhora em execução do alienante, mas cuja titularidade ainda não fora alterada no Departamento de Trânsito. Confira-se:

Embargos de terceiro – Pretensão de desconstituição de penhora/bloqueio tirada sobre automóvel – Ausência de anotação junto ao registro público – Presunção de boa-fé do adquirente – Documento confirmando a aquisição do bem antes da data da penhora – Não caracterização da fraude à execução – Sentença de improcedência dos embargos – Reforma – Recurso provido.

 (Apelação nº. 9094378-14.2008.8.26.0000. 1ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do TJ SP. Julgado em 10.12.2013. Rel. Des. Marcia Dalla Déa Barone)

 Embargos de Terceiro – Sentença que julgou improcedentes os embargos – Alienação de automóvel pelo devedor em momento anterior ao bloqueio do bem no registro competente – Reconhecimento de fraude à execução que exige prova de má-fé do terceiro adquirente – Presunção de boa fé não afastada – Fraude à execução não configurada – Precedentes – Aplicação da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça – Bloqueio que deve ser afastado – Sentença reformada – Recurso provido.

(Apelação nº. 0004715-13.2012.8.26.0084. 5ª Câmara de Direito Privado do TJ SP. Julgado em 27.11.2013. Rel. Des. Moreira Viegas)

É bem verdade, entretanto, que há precedentes em sentido diverso. Esses precedentes dizem respeito ao exercício do poder de exigir a abstenção de uso da marca pelo cessionário do registro em relação a terceiros. Vale dizer, os precedentes que seriam aparentemente divergentes da tese defendida aqui dizem respeito a processos de infração movidos por cessionário antes da publicação da cessão. Trata-se de questão antiga e o mestre João da Gama Cerqueira já listava essas situações na edição de 1956 de seu Tratado da Propriedade Industrial (ainda na vigência do CPI/45, portanto):

A transferência da marca opera-se entre as partes pelos simples acôrdo de vontades manifestado no contrato (…); mas não produzirá seus efeitos em relação a terceiros, senão depois de anotada no Departamento Nacional da Propriedade Industrial (…). Antes de cumprida essa formalidade, o adquirente não pode agir contra terceiros que infrinjam o seu registro, requerer perante a administração pública a sua renovação, nem se opor à concessão do registro de marca idêntica ou semelhante, como também não poderá demandar judicialmente a anulação do que fôr concedido. [13]

Na hipótese imediatamente acima, compreende-se quem sustente que se deve negar a tutela ao cessionário cuja propriedade do registro ainda não foi publicizada para o terceiro. No entanto, vimos acima, o próprio STJ (no Recurso Especial n°. 36.102-8/RJ, de ementa acima transcrita) possui entendimento diverso, assim como o também já citado precedente do TJ RJ opera no mesmo sentido (Agravo de Instrumento n°. 0010765-55.2005.8.19.0000).

Aliás, a ninguém deve surpreender a interpretação segundo a qual a data do protocolo do requerimento de anotação deve prevalecer sobre a data de publicação da mudança de titularidade pelo INPI, uma vez que esse entendimento já é aplicado em outras situações.

Com efeito, observe-se, por analogia, que para a remissão ao exterior de royalties decorrentes do licenciamento de propriedade industrial, exige-se a averbação do contrato de licença no INPI. Antes dessa averbação, não é lícito remeter os royalties ao titular dos direitos de PI que não resida no Brasil. Evidentemente, o INPI também demora para averbar esses contratos, conquanto o tempo de espera seja bem menor. De fato, a autarquia leva cerca de 60 (sessenta) dias para averbar um contrato de licenciamento de patente ou de marca.

Em função desse tempo relativamente longo de espera e da necessidade de realização de pagamentos entre as partes contratantes, afinal o licenciante almeja receber os valores acordados pelo bem licenciado, o próprio INPI autoriza que sejam pagos royalties retroativos à data de protocolo do requerimento de averbação do contrato. Vale dizer, reconhecendo a nocividade da lentidão administrativa em face do dinamismo negocial, o INPI admite que sejam realizados pagamentos de royalties retroativos à data de apresentação do contrato, de modo que os efeitos da averbação retroagem no tempo. Confira-se o art. 3°. da Instrução Normativa n°. 39 de 2015 do INPI:

 Art. 3º O início do prazo de averbação para efeito da dedutibilidade fiscal de despesas com royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou semelhantes será contado a partir da data do protocolo do INPI, conforme o disposto na Decisão nº 9, da Coordenação Geral do Sistema de Tributação, de 28 de junho de 2000, da Receita Federal/MF.

(Grifamos)

Ora, a mesma interpretação deve ser dada à hipótese de anotação da transferência de titularidade de registro, em que os efeitos da publicação da cessão devem retroagir à data em que as partes apresentaram o contrato de cessão para anotação no INPI.

Veja-se que também nos casos de declaração de nulidade do registro de marca a LPI determina que os efeitos retroagem à data de depósito da marca: “Art. 167. A declaração de nulidade produzirá efeito a partir da data do depósito do pedido”.

Ainda por analogia, observe-se que também o sistema dos Registros Públicos funciona de forma semelhante. Com efeito, a Lei dos Registros Públicos (Lei n°. 6.015/1973 – LRP) estabelece que os efeitos do registro retroagem à data da prenotação[14]. Assim, aquele que tiver prenotado o seu título na matrícula de um imóvel primeiro terá precedência sobre os que vierem depois, seja numa compra e venda, seja para na anotação de um gravame, verbi gratia.

É notável que a anterioridade da prenotação ressalva e protege o título protocolado mesmo em casos de falência, conforme dispoe expressamente o art. 215 da LRP: “São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente”.

Portanto, a interpretação de que os efeitos da publicação da anotação de cessão devem retroagir à data do protocolo é sistemicamente consonante com o nosso ordenamento jurídico e privilegia a segurança jurídica em face da lentidão crônica da Administração Pública.

III – Hipóteses concretas de aplicação do presente entendimento

Para encerrar, cumpre demonstrar a importância prática da tese aqui defendida. Vislumbramos basicamente duas situações relevantes para a sua aplicação.

A primeira delas já foi tratada, conquanto brevemente, em alguns dos precedentes citados na seção anterior. Trata-se da hipótese em que o cessionário depara-se com uma contrafação cometida por terceiro. Estaria o novo titular da marca impedido de acionar judicialmente o contrafator enquanto a anotação da cessão ainda não estiver publicada pelo INPI, na medida em que a transferência de titularidade do registro não produz efeitos perante terceiros antes de ser publicada? Poderia o réu alegar ilegitimidade ativa do cessionário?

Mais do que isso: se for aceita a legitimidade ativa do cessionário para mover a ação, poderiam as eventuais perdas e danos ser limitadas apenas ao período posterior à publicação da anotação da cessão, uma vez que antes da publicação não produziriam efeitos perante terceiros?

Parece-nos que a melhor resposta para ambas as indagações acima é negativa.

Conforme vimos na seção anterior, diversos precedentes judiciais, de variados tribunais, privilegiando a segurança jurídica em face da lentidão do INPI, autorizam que o cessionário do registro atue contra o contrafator. Por sinal, reconhece-se esse direito, por vezes, até mesmo ao depositante de pedido de registro de marca, de modo a possibilitar que ele defenda a integridade material de seu signo distintivo e do fundo de comércio a ele atinente contra contrafatores antes mesmo da concessão do registro pelo INPI. Da mesma forma, são também diversos os mandados de segurança concedidos contra o INPI em razão da morosidade dos processos administrativos de competência desta autarquia. Confira-se:

CIVIL E COMERCIAL. CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO. RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. MARCA. DEPÓSITO EFETUADO JUNTO AO INPI. PENDÊNCIA DE REGISTRO. INTERESSE DE AGIR. CONFIGURAÇÃO.

 (…)

  1. A finalidade da proteção ao uso das marcas é dupla: por um lado protegê-la contra usurpação, proveito econômico parasitário e o desvio desleal de clientela alheia e, por outro, evitar que o consumidor seja confundido quanto à procedência do produto. 
  1. O art. 129 da Lei 9.279/96 subordina o direito de uso exclusivo da marca ao seu efetivo registro no INPI, que confere ao titular o direito real de propriedade sobre a marca. Mas a demora na outorga do registro não pode andar a favor do contrafator.
  1. Assim, não apenas ao titular do registro, mas também ao depositante é assegurado o direito de zelar pela integridade material ou reputação da marca, conforme o disposto no art. 130, III, da Lei 9.279/96. Interesse processual configurado.
  1. Recurso especial provido.

 (RESP n°. 1.032.104/RS. Terceira Turma do STJ. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe: 24.08.2011. Grifamos.)

EMENTA Ação de uso de marca e abstenção. Procedência parcial. Em relação à Ré Gamma, o julgamento deve cingir-se à marca Pholiaslim. Pedido de registro da marca Pholiaslim ainda não deferido. Não obstante, proteção ao depositante, desde que a causa de pedir seja a concorrência desleal. Inteligência do disposto no art. 130, III, da LPI. O art. 129 da Lei 9.279/96 subordina o direito de uso exclusivo da marca ao seu efetivo registro no INPI, que confere ao titular o direito real de propriedade sobre a marca. Mas a demora na outorga do registro não pode andar a favor do contrafator. Assim, não apenas ao titular do registro, mas também ao depositante é assegurado o direito de zelar pela integridade material ou reputação da marca, conforme o disposto no art. 130, III, da Lei 9.279/96. Interesse processual configurado. Apelação da autora não provida e da ré Gamma Comércio, Importação & Exportação Ltda. provida em parte, para limitar a abstenção ao produto PHOLIASLIM.

 (Apelação Cível com Revisão nº 0119724-77.2009.8.26.0003. Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ SP. Rel. Des. Romeu Ricupero. Julgado em 07.02.2012. Grifamos.)

 PROPRIEDADE INDUSTRIAL. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PRAZO PARA EXAME DE RECURSO ADMINISTRATIVO. PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA EFICIÊNCIA. EXCESSO DE REGISTROS PENDENTES DE EXAME. O FENÔMENO DESIGNADO DE BACKLOG. A REGRA DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. CONCESSÃO DA ORDEM.

  1. O princípio constitucional da razoável duração dos processos vincula também a Administração Pública, devendo o INPI conciliar o imperativo da impessoalidade com o da eficiência, para reduzir a estocagem de pedidos em exame, segundo a natureza e o grau de complexidade dos registros em espécie.
  1. O fenômeno designado de backlog, para justificar o atraso de exame dos registros e respectivos recursos, depende da explicitação dos motivos específicos determinantes, não valendo a mera indicação de dados estatísticos ou o temor do incremento de demandas judiciais em busca de antecipar decisões administrativas. 
  1. Apelação e remessa necessária improvidas.

(Apelação e Reexame Necessário n°. 0803242-13.2010.4.02.5101. Segunda Turma Especializada do TRF-2. Rel. Des. Liliane Roriz. Julgado em 24.04.2012)

APELAÇÃO – PROPRIEDADE INDUSTRIAL – ANÁLISE DE REGISTRO SOBRESTADA NO INPI DESDE 2008 – PEDIDO PARA FIXAÇÃO DE PRAZO PARA QUE A AUTARQUIA FEDERAL DÊ CONTINUIDADE AO PROCEDIMENTO – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E RAZOABILIDADE – RECURSO E REMESSA NECESSÁRIA IMPROVIDOS

I – Cinge-se a controvérsia em saber se o sobrestamento, imposto pelo INPI para a análise dos pedidos de registro da Autora, está dentro do prazo considerado admissível ou já exasperou o princípio da razoabilidade.

II – Colhe-se dos autos que os pedidos das marcas autorais foram sobrestados pelo INPI, respectivamente, em 03/06/2008 e 12/05/2009, em razão da antecedência da marca VIDA, registrada sob o nº 820.200.140, que já estava sobrestada, desde 01/04/2003, em razão do pedido nº 815.975.481; que, apesar de ter sido objeto de ação judicial (AC nº 990014474-0, julgada pela 1ª Turma Especializada desta Corte e definitivamente baixada, desde 05/03/2008), encontra-se com seu processo de análise completamente paralisado na Autarquia Federal desde 21/09/1999.

III – De sorte que, passados mais de 05 anos do trânsito em julgado da decisão referente ao registro 815.975.481, tido pela Autarquia como empecilho à análise dos demais, inclusive o da autora, e não tendo ela durante todo esse tempo se manifestado em nenhum dos processos, forçoso reconhecer que o prazo de análise das marcas da autora é moroso e injustificado, violando os princípios constitucionais da razoabilidade e da eficiência administrativa.

IV – Apelação e Remessa Necessária improvidas.

 (Apelação e Reexame Necessário n°. 0002886-46.2013.4.02.5101. Primeira Turma Especializada do TRF-2. Rel. Des. Messod Azulay. Julgado em 25.11.2014)

Os efeitos da publicação deverão, portanto, retroagir à data do protocolo, a fim de se prestigiar o novo titular do registro e a segurança jurídica.

A segunda situação que comporta relevante impacto prático na aplicação da tese em tela diz respeito à constrição judicial de registros de marca. Com efeito, poderia um credor penhorar registro de marca do cedente enquanto não houver a publicação da anotação da cessão, uma vez que antes da publicação a transferência de titularidade não produz efeitos perante terceiros?

Pressupondo-se que não há fraude à execução (art. 792, Código de Processo Civil) ou fraude contra credores (art. 158, Código Civil), ou seja, tendo a alienação do registro de marca ocorrido de boa-fé por ambas as partes, não parece razoável que o registro já alienado em negócio jurídico perfeito não produza efeitos perante o credor do cedente tão somente porque o INPI demora cerca de três anos para publicar a anotação da cessão, período de tempo este mais do que suficiente para que a condição patrimonial do cedente altere-se e enseje uma execução contra o seu patrimônio.

Muito mais grave do que essa situação é ainda o caso de uma execução fiscal. Vislumbremos a hipótese que se segue.

Dispõe o art. 185, caput, do Código Tributário Nacional que “presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa” (grifamos).

Imagine-se que, de boa-fé, o cedente alienou o registro de marca para o cessionário em 2015. No mesmo ano, requereu-se a anotação da transferência de titularidade do registro ao INPI, o qual somente publicou a referida anotação de cessão em 2018. Cogite-se, agora, que em 2017 o cedente foi inscrito na dívida ativa de um ente da federação, o qual moveu execução fiscal apenas no último ano do prazo prescricional (art. 174, CTN), a saber, em 2022.

Nesse cenário, indaga-se: à luz do art. 185, do CTN, transcrito acima, poderia a Fazenda Pública alegar, passados sete anos da apresentação ao INPI do contrato de cessão (!), que o registro de marca é penhorável e responde pelas dívidas do cedente porque a certidão de dívida ativa foi emitida em 2017, isto é, um ano antes da publicação pelo INPI da anotação da cessão na RPI, antes da qual a alienação não produziria efeitos perante terceiros?

Mais uma vez, parece-nos que a resposta é negativa, devendo-se privilegiar a segurança jurídica. Os efeitos da publicação deverão retroagir à data do protocolo, que é, no nosso exemplo, anterior à CDA.

Evidentemente, deve-se admitir a penhorabilidade do registro de marca na hipótese de um contrato de trespasse, id est, de alienação de estabelecimento comercial. Nesse sentido, dispõe o art. 133, caput, do CTN:

 Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato:

I – integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade;

II – subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão.

Sem embargo, o problema persistiria para a hipótese de alienação do registro de marca em sede de recuperação judicial (ex: venda de unidade produtiva isolada) ou falência, pois, nestes casos, o adquirente não responde pelas dívidas do alienante (art. 133, §1°, CTN[15]). A distinção é explicitada pelo magistério de Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavali, que salientam a ausência de sucessão tributária no caso:

 O principal aspecto distintivo entre o contrato de trespasse e a alienação de unidade produtiva isolada diz respeito à disciplina da sucessão em dívidas com fornecedores, com empregados e com o Fisco. Em caso de trespasse de estabelecimento, o adquirente responde pelas dívidas trabalhistas (arts. 10 e 448 da CLT), pelas dívidas tributárias (art. 133 do CTN) e pelas demais dívidas (art. 1.146 do CC/02).

(…)

 Essas três características do contrato de trespasse (sucessão em obrigações, ineficácia da alienação perante credores do alienante e a disciplina da cessão de posição contratual) não se aplicam ou são bastante amenizadas em caso de alienação de unidade produtiva isolada em recuperação judicial de empresas.

 Em primeiro lugar, não há fraude a credores nem fraude à execução no caso de alienação de unidade produtiva isolada, em conformidade com o plano homologado. Esses atos, aliás, mesmo em caso de convolação em falência, serão preservados, conforme estabelece o art. 61, §2°, da LRF. [16]

Nesse mesmo sentido, o professor Luciano Amaro expõe com perfeição a mens legis do citado art. 133, §1°, do CTN:

(…) O adquirente de bens, numa alienação judicial em processo de falência, não responde, nem subsidiariamente, por tributos devidos pela empresa falida; no mesmo sentido, no processo de recuperação judicial, a venda de filial ou de unidade produtiva isolada também não acarreta responsabilidade tributária para o comprador. Essas disposições, ao excluir a regra de sucessão tributária nas hipóteses assinaladas, buscam afastar o receio de potenciais compradores de assumir passivos fiscais elevados e desconhecidos, receio esse que aviltava o preço dos ativos das empresas falidas ou concordatárias e os tornava praticamente invendáveis. [17]

Sendo assim, se a recuperação judicial for convolada em falência ou se a sociedade já recuperada voltar a contrair dívidas tributárias, a eventual cessão de registros de marca de seu ativo não poderá ser questionada pela Fazenda Pública em função do simples fato de que a anotação de cessão ainda não fora publicada pelo INPI, de modo que não haveria a produção de efeitos perante terceiros. Pelo contrário: os efeitos da publicação deverão retroagir a fim de proteger o negócio jurídico perfeito e de garantir a segurança jurídica.

IV – Conclusão

O INPI sofre há anos de patológico “backlog”, que acarreta inúmeros prejuízos em diversos aspectos do sistema brasileiro de inovação e de Propriedade Industrial. Particularmente, embora o ato da autarquia pertinente às cessões de titularidade de registros de marca seja uma simples anotação (não havendo, pois, processo administrativo ou exame de mérito do negócio jurídico, mas uma simples verificação de requisitos formais), atualmente o INPI leva cerca de três anos para realizá-lo. Evidentemente, as consequências danosas dessa injustificada demora não podem ser suportadas pelo administrado.

Em razão dessa situação, a melhor interpretação do art. 137, da LPI, que determina que “as anotações produzirão efeitos em relação a terceiros a partir da data de sua publicação” deve ser no sentido de que os efeitos da publicação da anotação de transferência de propriedade retroagem à data de protocolo do requerimento, tendo em vista que se trata de simples anotação sem exame de mérito e que o INPI, apesar disso, leva tempo não razoável para concluir a anotação.

Destarte, pudemos constatar neste trabalho que não apenas imperativos de ordem prática conduzem a essa conclusão, como também que a interpretação proposta não é estranha ao ordenamento jurídico pátrio, pois o próprio INPI admite a retroatividade à data do protocolo para as remessas de royalties ao exterior, assim como o RGI retroage os efeitos do registro à data de prenotação dos títulos, por exemplo. Trata-se, portanto, de interpretação sistemática, que deve prevalever em favor da segurança jurídica de nosso ordenamento.

[1]Fonte: http://www.inpi.gov.br/sobre/arquivos/130315_status_agenda_prioritaria_dez_14_executivo_v2.pdf/view. Acesso em 16/09/2015.

[2] “Sem estrutura adequada, INPI atrasa concessão de patentes”. In: Valor Econômico. Edição de 09/07/2015.

[3] Ibid. Grifos nossos.

[4]   Art. 5º. Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial.

[5] Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

[6] BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo IV. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. P. 420-421.

[7] CPI/71: Art. 88, 1°: “A transferência só produzirá efeito em relação a terceiros depois de publicado o deferimento da respectiva anotação”.

[8] BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tomo III. Coimbra: Ed. Coimbra, 1970. P. 11.

[9] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1986. P. 68.

[10] Ibid. P. 67. Grifos nossos.

[11] Choloepus didactylus é o nome científico do simpático “bicho-preguiça” ou “preguiça real”: o ilustre professor se vale dessa imagem para retratar a morosidade do INPI.

[12] BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo IV. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. P. 549.

[13] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propridade Industrial. Vol. II. Tomo II. Parte III. Rio de Janeiro: Forense, 1956. P. 188.

[14] Art. 188 – Protocolizado o título, proceder-se-á ao registro, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes.

 

Art. 183 – Reproduzir-se-á, em cada título, o número de ordem respectivo e a data de sua prenotação.

[15] § 1° O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial:

I – em processo de falência;

II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial.

[16] AYOUB, Luiz Roberto et al. A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 233 e 236.

[17] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 351.