Contratos de Fornecimento de Tecnologia no Setor de Autopeças: Conceitos Básicos e Cautelas Essenciais

Autor: Leandro Moreira Valente Barbas

  1. Introdução: breve panorama da questão e premissas básicas do texto

O setor de autopeças é, acima de qualquer dúvida, de importância fundamental para a indústria brasileira. Nos últimos anos, tem sido alvo de maciços investimentos, bem como de programas governamentais[2] de incentivo à produção e à inovação.

Para se ter uma brevíssima imagem, no ano de 2011, o setor respondeu por 1,6% de todas as exportações do país, em montante equivalente a pouco menos de US$ 4 bilhões[3].  Nas importações, os números são ainda maiores para o mesmo ano: 2,8% das entradas totais, no que corresponde a aproximadamente US$ 6,3 bilhões[4]. Já no ano de 2013, segundo dados do setor[5], as exportações responderam por aproximadamente US$ 9,8 bilhões, enquanto as importações somaram cerca de US$ 19 bilhões.

Permitimo-nos expor brevemente os números acima para ilustrar um fato: o cenário na balança comercial do setor é de déficit[6], eis que, por óbvio, há predominância das importações sobre as exportações.

Ou seja, apesar da existência de programas e esforços voltados ao incentivo, investimento e inovação no setor, sejam de ordem pública ou privada, é de se admitir que o desenvolvimento desta indústria, principalmente no tocante à pesquisa e desenvolvimento, ainda depende, em larga escala, da recepção de tecnologia desenvolvida no estrangeiro.

No âmbito do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, o setor de autopeças sempre recebeu atenção destacada[7], muito em virtude do amplo número de pedidos de registro e averbação de contratos de fornecimento de tecnologia e assistência técnica trazidos pelas inúmeras empresas do ramo. Dada a alta dependência que o país tem de tecnologia estrangeira no setor, como se extrai dos números acima, tal demanda não chega a ser incomum.

Ora, sabe-se que a vastíssima maioria das empresas do setor de autopeças são de capital estrangeiro ou majoritariamente estrangeiro: cerca de 75% do setor[8]. São mais de 650 empresas que fornecem peças para cerca de 40 fábricas distribuídas pelo Brasil[9]. Em sendo a maioria das empresas do ramo estrangeiras, não há incoerência em se presumir que muitas optarão por trazer a tecnologia desenvolvida em centros de pesquisa localizados no estrangeiro, ao invés de montar o seu próprio polo de pesquisa no país[10]. Ou, ainda, é possível obter tecnologia de outra empresa, mesmo que localizada no país ou desenvolvida internamente.

Logo, o uso de contratos de transferência de tecnologia é fundamental para esta dinâmica, viabilizando a remessa internacional da remuneração correspondente à empresa fornecedora, quando localizada fora do país[11].

Há duas formas básicas para se atingir o mesmo resultado de viabilização do uso legítimo de técnicas e processos desenvolvidos por terceiros. A primeira está relacionada a patentes, às quais se relacionam os contratos de licença e exploração de patentes (LEP). É por meio destes que o titular de uma patente (licenciante) irá permitir que um terceiro (o licenciado) explore tal direito de exclusivo, mediante remuneração ou a título gratuito. A cessão de patentes, na qual há transferência definitiva de titularidade, também se enquadra nesta categoria.

A segunda forma é através de contrato de fornecimento de tecnologia (FT), aplicável às técnicas e processos não patenteados ou patenteáveis (know-how)[12].

O presente texto objetiva delinear algumas cautelas essenciais que o advogado deve ter ao lidar com contratos de fornecimento de tecnologia específicos do setor de autopeças. O segmento conta com peculiaridades que exigem do profissional atenção especial a certos detalhes que necessitam ser bem clarificados ao órgão examinador (INPI) a fim de minimizar os riscos de expedição de cartas de exigência, promovendo o ganho de tempo e eficiência.

Optamos por não abordar o tema dos contratos de licença e exploração de patentes por estarem eles inseridos em dinâmica distinta. Isso porque toda a discussão técnica a respeito de uma patente ocorre no bojo de seu processo de registro, sendo que o licenciamento não as reabre. Já no caso do contrato de fornecimento de tecnologia, haverá a necessidade de se mostrar ao INPI, ainda que de forma superficial[13], a natureza e o mérito inovativo da técnica objeto de averbação. Ainda, os contratos de FT tem um prazo máximo de cinco anos para vigência, sendo prorrogáveis apenas em existindo justificativa plausível e comprovada[14], enquanto o licenciamento de patentes pode persistir até que se expirem os prazos de validade dos privilégios. Logo, os cuidados que o profissional terá de adotar quando da submissão a registro de um e de outro tipo contratual serão distintos, justificando a necessidade de aqui fazermos uma opção.

Enfim, o presente texto decorre do fato de os profissionais da propriedade intelectual a geralmente lidarem com tais pedidos de registro não serem, em sua maioria, engenheiros ou conhecedores de tecnologia de autopeças. Apesar deste fato, precisam conhecer um pouco, o mínimo, do setor em que se insere o contrato de tecnologia em questão. Nosso objetivo é buscar aclarar alguns aspectos deste “mínimo”.

  1. O mínimo além do mínimo: componentes básicos à descrição da tecnologia

O texto de Juliana Viegas que aqui já citamos cumpre bem o papel de fornecer ao profissional um guia básico sobre os componentes que o contrato de fornecimento de tecnologia necessita ter. Trata-se das cláusulas tradicionais referentes ao objeto contratual, prazo, remuneração, direitos básicos das partes, resolução de controvérsias, idioma, dentre outras.

Se tivéssemos que enquadrar o nosso texto no âmbito de uma destas cláusulas, o faríamos na do objeto contratual.

Ora, sabe-se que o objeto, em contratos de tecnologia, precisa ser muito bem delimitado e descrito, de forma a permitir identificar o que será de fato fornecido. Trata-se da própria demarcação das fronteiras entre os direitos e deveres das partes quanto ao cerne da relação contratual.

Os conceitos básicos a seguir são de compreensão necessária àquele que opera, ou quer operar, contratos de tecnologia no setor automotivo. A fim de diminuir a probabilidade de expedição de cartas de exigência por parte do INPI quando da análise dos pedidos de registro e averbação, recomenda-se que, compreendidos, sejam expressos de maneira clara na documentação a instruir o pedido.

2.1 Modelos e anos (ano de fabricação e ano-modelo)

Aqui entra a primeira peculiaridade destes contratos quando inseridos no contexto do setor de autopeças: a definição do âmbito concreto de aplicabilidade da tecnologia em questão.

Isso significa que, para que o INPI possa ter pleno conhecimento da matéria que lhe será submetida à apreciação, frequentemente não bastará a mera descrição das peças sobre as quais foi aplicada alguma inovação. Será necessário, na maioria das vezes, deixar claro em que modelo de veículo aquela peça será utilizada.

Praticamente toda montadora comercializa, dentre seu catálogo, inúmeros tipos diferentes de carro. Tal fato nada mais é que natural, uma vez que cada tipo de veículo atenderá a uma demanda distinta. Cada consumidor tem seu perfil, logo cada consumidor tem seu veículo de preferência, dentro de suas capacidades econômicas.

Por mais óbvia que tal constatação possa parecer, em se tratando de peças de veículos, o foco por vezes fica no componente em si (a peça) e não no todo (o veículo). Ou seja, nem sempre se lembra de mencionar em que modelo a peça será introduzida.

Todos sabemos que, ano após ano, os veículos automotores ganham novas versões, geralmente expressadas pelo biênio em que o veículo terá seu ciclo principal de comercialização, passando a ser considerado “usado” ou “seminovo” uma vez encerrado tal período de tempo. No presente ano, por exemplo, temos testemunhado o lançamento de veículos ano 2016/2017. O primeiro ano se refere ao ano de fabricação do modelo, enquanto o segundo faz referência ao ano do modelo. Ou seja, um veículo “2016/2017” foi fabricado em 2016, e, mesmo que tenha sido vendido neste mesmo ano, pode-se dizer que seu “ano-modelo” é 2017. Não por outro motivo é que o documento-padrão oficial de registro do veículo (CRV – Certificado de Registro de Veículo) traz em si, em quadros separados, as informações de “ano de fabricação” e “ano-modelo” do veículo objeto do certificado.

É comum que as empresas do setor busquem o registro de contratos referentes a tecnologias de acordo com a geração do veículo (ponto que abordaremos adiante), mas mesmo em tal hipótese será extremamente conveniente fazer constar, dos documentos de explanação técnica e da carta justificativa a acompanhar o pedido de registro, os anos dos modelos (seja de ano fabricação ou ano-modelo) em que as tecnologias objeto de contrato serão aplicadas.

Entretanto, sabe-se que a sistemática do setor é mais complexa do que isso. Para nela adentrarmos mais a fundo, é preciso que abordemos um conceito importante: o de gerações.

2.2 Gerações

  Apesar de os modelos veiculares serem comercializados como novos a cada ano, fato é que raramente haverá profunda mudança tecnológica nesta escala de tempo.

Certamente que, ano após ano, os novos modelos trazem alterações em si, geralmente de design[15] ou no que se refere a determinados itens. Ora, se fossem exatamente idênticos aos do ano anterior, não haveria qualquer ponto positivo a estimular a comercialização. Tais alterações pontuais são, portanto, essenciais à indústria.

Do ponto de vista tecnológico, entretanto, raramente haverá mudança profunda e generalizada na tecnologia do veículo em escala anual. Isso porque, como se sabe, a base tecnológica de cada modelo só pode ser alterada em períodos mais longos de tempo, que variam de acordo com o planejamento e a proposta de cada montadora[16]. Ou seja, a alteração do plano, da base tecnológica sob a qual se firma cada veículo, só ocorre de fato em um período de tempo maior que o anual – geralmente a cada três a cinco anos.

Quando ocorre tal mudança nas próprias bases em que se firma a tecnologia do veículo, tem-se uma nova geração daquele determinado modelo.

Os contratos de tecnologia relativos a peças de composição geralmente versarão sobre tecnologia aplicada a certa geração de veículo. Por óbvio que, se mudou toda a base tecnológica na qual se firma o veículo como um todo, atribuindo-lhe até nova denominação de geração, evidente que a tecnologia também terá mudado de forma tal que faça jus à celebração de novo contrato de fornecimento de tecnologia. Não fosse o caso, não haveria porque falar em nova geração de veículo.

Porém, o fato de as gerações de veículos mudarem após períodos mais longos não significa, nem de longe, que a tecnologia objeto do contrato será exatamente a mesma por todo o período contratual, permanecendo imutada até que se lance uma nova geração. Este, inclusive, raramente é o caso. Ora, em uma indústria de mutação constante, e com exigências técnicas de extrema precisão, é absolutamente comum que mesmo as menores peças passem por constantes e incessantes processos inovativos, que vão além dos meros ajustes.

É comum que cada geração de veículo seja identificada por um código. Trata-se de uma numeração internacional dada a cada geração de tecnologia utilizada em automóveis, tendo em vista que os nomes dos veículos podem variar ao redor do mundo. Em não podendo se determinar a tecnologia do veículo através da leitura do nome do modelo, opta-se por fazê-lo através da atribuição de um código internacional.

Os exemplos são inúmeros: determinada geração do veículo que no Brasil bem conhecemos como Toyota Corolla já recebeu, em outros países do mundo, o nome de Toyota Altis e Toyota Axio; o conhecido Honda Fit se chama Honda Jazz na Europa, dentre inúmeros outros exemplos. A despeito do nome diferente, a tecnologia básica em que se funda cada automóvel é a mesma nestes casos (descartados eventuais ajustes regionais).

É comum que este código receba os nomes de “codename” ou “program code” em inglês, ou “projeto” e “plano” em português, e seja composto de três a cinco caracteres, misturando letras e números. Por exemplo, o código correspondente a determinada geração do veículo conhecido como Mitsubishi Outlander é[17] “GS45X”, enquanto uma das gerações do popular Nissan March recebe o código “X02A”.

Ou seja, independentemente do nome de modelo, internamente, os agentes interessados saberão identificar a tecnologia básica na qual se firma o veículo apenas pelo código. Em outras palavras, a simples menção a esta numeração lhes permitirá fazer remissão à tecnologia de que se trata, em qualquer lugar do mundo, independentemente do nome de modelo veicular.

Para o profissional encarregado de levar a registro o contrato de fornecimento de tecnologia, pode ser extremamente útil fazer menção à geração de veículos em que a tecnologia de fabricação de determinada peça será aplicada. Tal menção facilita a pormenorização da tecnologia de que se está a tratar, torna mais clara eventual comparação para com gerações futuras ou pretéritas do mesmo modelo de veículo, além de, não raro, facilitar o próprio diálogo do profissional jurídico para com o profissional técnico da área de autopeças.

2.2.1 Tecnologia desenvolvida no curso do período contratual, e/ou para peças aplicáveis a modelos que já contem com nova geração em mercado

A mudança de geração de um veículo não resulta, necessariamente, no total esquecimento ou obsolescência de toda tecnologia que for aplicável a modelos de gerações pretéritas. Ainda, durante todo o prazo contratual (geralmente de cinco anos), fatalmente as peças objeto do contrato continuarão a passar por reformulações e aprimoramentos, sempre em busca de melhorá-las na performance, aumento de segurança/redução de riscos e eficientização de custos.

Em sendo substanciais as mudanças introduzidas, não é impossível sustentar que, para aquela peça específica, trata-se de uma tecnologia completamente distinta, ainda que aplicável a determinada geração pretérita de veículo. E, com a devida comprovação técnica de que houve efetiva inovação, diferenciando-a em fundamento da tecnologia anteriormente introduzida e objeto do contrato original ou pretérito, fica possibilitada, em tese, a prorrogação do contrato para aquela tecnologia, ou a apresentação de um contrato novo (caso se trate, efetivamente, de tecnologia distinta), mesmo que já haja nova geração do veículo em comercialização. Tudo dependerá dos elementos fáticos e do julgamento técnico a ser feito no caso.

Neste ponto, cabe ressaltar que, mesmo que determinada geração de veículo mais nova já esteja em comercialização, tal fato não há de sepultar as possibilidades da continuidade, através de prorrogação, de contratos de fornecimento de tecnologia referentes a gerações pretéritas destes mesmos veículos. Há de se ressaltar que não é incomum que, na área, peças aplicáveis a anos anteriores de veículo continuem a passar por processos inovativos mesmo depois do lançamento de modelos mais novos do mesmo carro, moto ou afim.

Há de se considerar principalmente o mercado de exportação (não é impossível que modelos que aqui já não sejam os mais recentes ainda o sejam em outros países) e o mercado de peças de reposição. Não é possível concluir-se, automaticamente, que a peça de reposição será sempre uma peça com tecnologia obsoleta só pelo fato de já haver tecnologia para peça aplicável em geração mais nova do mesmo veículo. Mesmo peças de reposição aplicáveis a modelos pretéritos de veículos podem passar por processos de inovação que necessitem ser transferidos e remunerados através de novos contratos ou da prorrogação de contratos a expirar. Basta pensar que, havendo à disposição melhorias que aprimorem a segurança do veículo ou o tornem mais eficiente (por exemplo diminuindo seus níveis de poluição), pode ser de total interesse da empresa promover inovações em peças de reposição aplicáveis a veículos que já não correspondam a seus modelos mais recentes. Ressalte-se, ainda, que, tal fato não significa que haverá sobreposição de tecnologias, tendo em vista que as tecnologias de gerações posteriores tendem a ser profundamente distintas das tecnologias de gerações anteriores, sendo, via de regra, simples ao Requerente evidenciar de maneira didática tais distinções. Há de se ressaltar igualmente que tal evidenciação pode bem ser feita de antemão, com o fito de facilitar o exame por parte do INPI. Sem ela, dificilmente o Requerente conseguirá escapar da expedição de uma exigência justamente neste sentido.

2.3 Versão

Outro aspecto que pode ser objeto de análise no bojo de um contrato de fornecimento de tecnologia do setor é a versão do veículo na qual será empregada a peça.

Diferentemente do modelo ou da geração, a versão diz respeito a determinadas características técnicas a compor um mesmo veículo. Ou seja, apesar de a tecnologia básica na qual se firma o veículo ser a mesma, poderá haver (como geralmente há) diversos “tipos” integrantes de uma mesma geração, ano e nome de modelo.

Por exemplo, o conhecido Wolkswagen Fox tem oito versões diferentes. O Gol tem catorze. O que diferencia cada um destes veículos não é o plano básico de tecnologia na qual eles se firmam, mas sim determinadas características técnicas.

A distinção entre versões geralmente é identificada através de um pequeno acréscimo ao nome do veículo. O Honda City, por exemplo, é comercializado, dentre outras, nas versões DX e LX. Ambos os veículos são igualmente Honda City, mas a primeira conta com transmissão manual, enquanto a segunda é de transmissão automática. Ao mesmo tempo, a primeira tem rodas de aço aro 15, enquanto a segunda conta com rodas de liga leve aro 16.

Nos contratos de fornecimento de tecnologia, tal distinção pode vir a ser conveniente em certos casos. Imagine-se que determinada montadora tenha fornecedoras distintas para suas rodas de aço e de liga leve. Cada roda é utilizada em uma versão de automóvel. Se uma destas fornecedoras desejar fazer registrar um contrato para que se opere a transferência de específica tecnologia para aquele específico tipo de roda, terá que fazer constar que tal tecnologia será empregada em determinada versão de determinado modelo de veículo. Em casos como este, sem tal distinção, o INPI poderá, com justiça, questionar se a tecnologia transferida por um dos fornecedores envolvidos é idêntica à contemplada por outro contrato.

Em casos onde a peça cuja tecnologia está a ser transferida for aplicável indistintamente a todas as versões de um mesmo veículo (o que não é incomum), pode ser dispensável a menção específica à versão do veículo.

  1. Onde e como fazer a necessária ênfase?

Mencionamos acima que os conceitos básicos que aqui repassamos dizem respeito à delimitação específica do objeto contratual. É absolutamente comum que contratos de fornecimento de tecnologia venham acompanhados de especificações técnicas produzidas pelo próprio corpo de funcionários do cliente (a empresa de autopeças). Ainda, caso a tecnologia tenha sido desenvolvida no exterior[18], tal documentação pode vir diretamente em idioma estrangeiro, sendo então traduzida para o português. Como o advogado ou agente frequentemente não tem a qualificação técnica necessária para compreender tais especificações (e nem lhe seria exigível tê-la), muitas vezes acaba por não perceber a eventual ausência de informações tais como as que acima colocamos como necessárias. Vem-se a perceber a falha apenas quando o INPI já emitiu a exigência questionando tais informações.

Por outras vezes, a documentação, por ser eminentemente técnica, acaba não sendo compreendida pelo próprio INPI, cujos examinadores da área de contratos, sem qualquer culpa, também nem sempre serão engenheiros com a qualificação e os meios para identificar e compreender códigos utilizados pela empresa (tais como aqueles referentes a gerações, por exemplo). O meio que terão para questionar eventuais dúvidas que surjam quando da análise de tal documentação será, sem surpresa, a exigência.

Assim, parece-nos desejável, a fim de minimizar a probabilidade de expedição de exigências, que o profissional incumbido de levar a registro tais contratos municie-se das cautelas que acima expomos, inserindo as informações necessárias:

  1. No corpo do próprio contrato, na cláusula de objeto contratual ou outra que a equivalha, quando possível;

2. No anexo de descrição técnica da tecnologia objeto de contratação, caso lá já não esteja ou caso sua compreensão não esteja clara ou explícita;

3. Na carta justificativa, onde deverá ficar clara e detalhadamente explicado o exato âmbito de inserção da tecnologia dentro da sistemática do veículo, com menção expressa, se possível, à geração, ano, modelo e, a depender do contexto fático do caso, versão.

A forma concreta pela qual o profissional incorporará tais informações ao texto não deixa de ser simples. Nos trabalhos que geralmente ficam a cargo do advogado ou agente, quais sejam a redação de carta justificativa e do contrato em si, basta fazer constar, conforme a conveniência, as informações relevantes.

A cautela necessita ser tomada quanto aos anexos de especificação técnica, que, não raro já são remetidos prontos ao manejador do pedido de registro. Ainda que o advogado não tenha o cabedal teórico necessário para realizar qualquer análise aprofundada do mérito tecnológico sobre o qual o contrato versa, tal fato não lhe dispensará, nestes casos, de verificar o que lá se encontra escrito. E, caso note que ali não constam as informações que aqui colocamos como de conveniente inclusão, caber-lhe-á questionar o cliente a respeito. Pautados por um ideal de eficiência, partimos do pressuposto de que é mais favorável questionar os técnicos da empresa nesta fase de análise preliminar, do que posteriormente, quando da resposta a eventual exigência.

  1. Um resumo para concluir: as informações, e onde colocá-las

  Passamos ao trecho final de nosso escrito operando um brevíssimo resumo de tudo o que abordamos acima.

→ Nos contratos de fornecimento de tecnologia que estejam inseridos na sistemática do setor de autopeças, mostra-se conveniente, a fim de reduzir os riscos de expedição de exigências por parte do INPI, a inclusão de certas informações referentes ao veículo em que a peça será introduzida.

→ A inclusão de tais informações auxilia a compreensão do exato conteúdo tecnológico do contrato pelos examinadores do INPI, razão pela qual sua menção tem o potencial de reduzir as probabilidades de expedição de exigências. Ou seja, aclara-se já o escopo exato de aplicação da tecnologia, buscando evitar o surgimento de questionamentos exatamente neste sentido.

→ A plena compreensão destas informações exige do advogado ou agente da propriedade industrial um referencial teórico mínimo acerca das nomenclaturas comumente utilizadas no setor.

→ Ressalte-se, ainda, que o setor automobilístico está em mutação contínua e constante. Isso não permite afirmar, de antemão, que a tecnologia de determinada peça aplicável a determinado ano e modelo de veículo é igual ou não à peça correspondente empregada em anos pretéritos ou futuros.

→ Assim sendo, e levando em consideração o que acima expomos, temos por conveniente a compreensão dos seguintes conceitos, com a inclusão, na documentação a instruir os pedidos de registro e averbação dos contratos de fornecimento de tecnologia no INPI, de algumas ou todas as informações abaixo listadas, conforme a necessidade imposta pelo contexto e a conveniência:

Conceito Conteúdo resumido Exemplo Onde inserir
 

 

 

 

 

 

Carta Justificativa

 

Anexo Técnico

 

Quando conveniente, na cláusula de objeto contratual

Modelo O nome que leva determinado tipo de carro, associado ao nome da montadora que o produz. Ford Focus, Fiat Uno, Wolkswagen Gol.
Ano O ano do modelo, podendo ser expresso por um biênio. O primeiro ano do biênio faz referência ao ano de fabricação do veículo, enquanto o segundo refere-se ao “ano-modelo”. Mitsubishi Pajero 2013/2014 (2013 é o ano de fabricação, 2014 o ano-modelo)
Geração A base tecnológica na qual se firma fundamentalmente o veículo. Geralmente é renovada a médio prazo. Toyota Corolla Décima Geração (2008-2012)
Plano / Projeto / “Codename” / “Program Code” Código internacional que corresponde a determinada geração de determinado modelo de veículo W02A (Identifica determinada geração do Nissan March)
Versão Nomenclatura que permite identificar certas características especiais dentre veículos de mesmo ano e modelo, geralmente relativa a presença de certos itens. Honda City 2014 DX (com transmissão manual, dentre outras características);

 

Honda City 2014 LX (com transmissão automática, dentre outras características).

 

A título meramente exemplificativo, podemos fazer menção à redação dada por diferentes Requerentes, e com a chancela do INPI, que se adaptam às cautelas acima enumeradas. Todas as informações são públicas e constam da folha de andamentos processuais constante do próprio site do INPI:

Processo BR 70 2014 000358-7: Fabricação de ar condicionado (…) radiador, ventilador (…), destinados aos veículos modelo Toyota Corolla/código modelo 369A, produzido pela Toyota do Brasil e aos veículos Honda FIT/código modelo 2WF e Honda CITY/código modelo 2CT;

Comentário: Menção às marcas, nomes dos modelos e ao código de geração como forma de pormenorizar o âmbito de aplicação da tecnologia transferida.

Processo BR 70 2014 000260-2: Fabricação de peças (…) que fazem parte do sistema de exaustão veicular (…) para os modelos Honda Fit e Honda City, (…) de 1.4L e 1.5L, motocicletas e peças de substituição.

Comentário: menção ao nome dos modelos e as versões dos veículos.

Processo BR 70 2016 000138-5: Fabricação de componentes e partes referentes ao (…) Painel automotivo referente ao veículo 723D da Nissan Automóveis do Brasil Ltda., conforme Anexo 1 (…)

Comentário: menção a código interno específico referente a determinado modelo de veículo, melhor explanado através de Anexo.

Referências Bibliográficas

  • MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR. SECRETARIA DO DESENVOLVIMENTO DA PRODUÇÃO – SDP/MDIC. Anuário Estatístico 2012. Brasília: 2012, p. 28. Disponível em: http://www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1337260033.pdf (acesso em: 02/05/2014)
  • MALAVOTA, Leandro Miranda. INPI e a transferência de tecnologia: uma análise das políticas de controle sobre as contratações tecnológicas durante o regime militar brasileiro. Londrina: Trabalho apresentado no ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2005. pp. 3-4. Disponível em: http://anpuh.org/anais/?p=18286 (acesso em: 20/09/2016)
  • MARTINS, Clea. NUNES, Weslei. Uma aposta sábia. Revista Mundo Automotivo (Matéria de Capa), Número 217. Dezembro de 2012.
  • Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores – Sindipeças & Associação Brasileira da Indústria de Autopeças – Abipeças. Desempenho do Setor de Autopeças 2014. São Paulo: Ponto e Letra, 2014. P. 31.
  • VIEGAS, Juliana L. B. Contratos de Fornecimento de Tecnologia e de Prestação de Serviços de Assistência Técnica e Serviços Técnicos. In: JABUR, Wilson Pinheiro & DOS SANTOS, Manoel J. Pereira. Contratos de Propriedade Industrial e Novas Tecnologias. São Paulo: Saraiva, Série GVlaw, 2007. Pp. 145-184.

[1] Registrem-se meus sinceros agradecimentos aos engenheiros Marcio Valente Barbas e Newton Thisted, pelo auxílio na revisão técnica do escrito.

[2] Dentre as recentes iniciativas governamentais para estímulo à inovação e investimento no setor, destaca-se o “Inovar-Auto”, programa específico desenvolvido no macroambiente do “Plano Brasil Maior”. Instituído pela Lei Federal nº 12.715/2012 e modificado pela Medida Provisória nº 638/2014.

[3] BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR. SECRETARIA DO DESENVOLVIMENTO DA PRODUÇÃO – SDP/MDIC. Anuário Estatístico 2012. Brasília: 2012, p. 28. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1337260033.pdf>(acesso em: 02/05/2014)

[4] Idem.

[5]  Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores – Sindipeças & Associação Brasileira da Indústria de Autopeças – Abipeças. Desempenho do Setor de Autopeças 2014. São Paulo: Ponto e Letra, 2014. P. 31.

[6] A seguinte passagem constante de publicação setorial anual acerca de estatísticas é explícita neste sentido: “O Brasil tem registrado déficits comerciais de autopeças constantes e preocupantes desde 2007. O País tornou-se destino certo para automóveis e autopeças produzidos em outros mercados, movimento estimulado pela valorização do real ante o dólar. A tabela a seguir mostra o crescimento das importações e o aumento do saldo negativo, que chegou a US$ 9,89 bilhões em 2013, 62% superior ao do ano anterior. A Argentina foi o principal destino das autopeças brasileiras e os Estados Unidos, o primeiro na lista dos países de origem de nossas importações.” Idem. P. 30

[7] Ora, basta constatar que o setor chegou até a receber, em época pretérita, diploma normativo próprio para elencar requisitos mínimos que os contratos de tecnologia do setor deveriam trazer (Ato Normativo nº 30, de 19 de janeiro de 1978). Tal ato normativo, inclusive, vedava a importação de tecnologias para o setor, já em um primitivo esforço no sentido de fazer desenvolver-se a tecnologia localmente. Cf. MALAVOTA, Leandro Miranda. INPI e a transferência de tecnologia: uma análise das políticas de controle sobre as contratações tecnológicas durante o regime militar brasileiro. Londrina: Trabalho apresentado no ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2005. pp. 3-4. Disponível em: http://anpuh.org/anais/?p=18286 (acesso em: 20/09/2016)

[8] Cf. SINDIPEÇAS, ABIPEÇAS. Desempenho, 2014 (citação acima). P. 13.

[9]Cf. BRASIL. MDIC. Automotivo. Disponível em: http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=2&menu=4205. Acesso em: 02/05/2014)

[10] Tal entendimento encontra-se refletido, dentre outras fontes, em publicação especializada voltada ao setor. MARTINS, Clea. NUNES, Weslei. Uma aposta sábia. Revista Mundo Automotivo (Matéria de Capa), Número 217. Dezembro de 2012. “Embora o setor tenha apresentado significativos investimentos nas suas divisões de P&D, isso não reflete a totalidade das empresas fabricantes de autopeças. Ao contrário. Há quem acredite que os investimentos são geralmente oriundos das grandes organizações e que fazem toda a diferença nos dados gerais do setor. E, apesar de não existir levantamentos que comprovem isso, são os próprios atuantes da cadeia que percebem essa circunstância.” (grifos nossos)

[11] O tema dos contratos de transferência de tecnologia não deve ser novidade ao leitor. Em sendo, entretanto, recomenda-se a leitura do aclarador texto de VIEGAS, Juliana L. B.  Contratos de Fornecimento de Tecnologia e de Prestação de Serviços de Assistência Técnica e Serviços Técnicos. In: JABUR, Wilson Pinheiro & DOS SANTOS, Manoel J. Pereira. Contratos de Propriedade Industrial e Novas Tecnologias. São Paulo: Saraiva, Série GVlaw, 2007. Pp. 145-184.

[12] Apesar de não se tratar de tecnologia submetida a direito de exclusivo, entende a doutrina que o know-how costuma ter caráter sigiloso, ou ao menos não é conhecimento plenamente acessível a qualquer interessado. Para uma discussão mais aprofundada a respeito da abrangência do conceito de know-how e das controvérsias que aí circundam, Cf. VIEGAS, Juliana L.B. Idem. Pp. 147-152.

[13] Entenda-se, por “superficial”, que a explanação da tecnologia se dará em termos simples e resumida, isso é, não refletirá com total exatidão a complexidade real da técnica objeto de contratação. Apesar de o INPI ser um órgão técnico não seria razoável ou sequer exigível que os examinadores tivessem, todos, qualificação técnica necessária para entender os pormenores de todos os tipos de tecnologia existentes – tendo em vista não se tratar de examinadores de patentes. Abordaremos com mais profundidade esta temática no decorrer do escrito.

[14] É que, como observa VIEGAS em texto que acima citamos (p. 181), o INPI adota a posição oficial de determinar cinco anos como prazo máximo para a vigência de contratos de transferência de tecnologia porque, ancorado em estudo elaborado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), este é o prazo máximo que qualquer empresa levará para absorver a tecnologia transmitida. Por isso é que eventuais pedidos de prorrogação precisam ser muito bem justificados, e refletirem os motivos pelos quais não foi possível a absorção efetiva da tecnologia dentro deste prazo.

[15] Ora, não nos parece haver método melhor de sugerir ao público consumidor se tratar de um veículo novo (a despeito da constância no plano tecnológico) do que mudar a estruturação visual do mesmo.

[16] Tal fato é óbvio, eis que uma mudança profunda e generalizada na tecnologia aplicada ao veículo só será possível mediante fruto de grandes esforços de pesquisa e desenvolvimento que sejam capazes de harmonizar novas funções para centenas de peças, levando em conta ainda inúmeras questões de suma importância tais como segurança, eficiência, proteção ambiental, conservação de combustível, conforto, design, dentre muitas outras. É mais que compreensível (sendo até óbvio) que não seja possível, em geral, promover mudanças tão profundas em escala anual.

[17] Note-se que os códigos e informações de veículos específicos aqui apresentados possuem somente caráter exemplificativo. Para maiores informações sobre determinados veículos e suas especificações, deve-se consultar o fabricante.

[18] Fazendo referência ao dado que expusemos na introdução do presente escrito, a grande maioria das montadoras são de capital majoritariamente estrangeiro, pelo que muitos centros de P&D localizam-se fora do Brasil, a despeito da tendência recente de atração de tais centros para o país.