Adriana Stamato
Ana Carolina Utimati
Empresas tem que enfrentar posições recentes da Receita sobre a tributação de direitos de distribuição
O ano começa já com importantes desafios para a indústria de software no Brasil. O já conhecido conflito entre ICMS e ISS ganha novos contornos com as legislações editadas ao longo de 2017, que certamente trarão maior complexidade e necessidade de revisitar o tema pelos tribunais e principalmente pelos contribuintes.
O cerne da disputa diz respeito ao conceito de software na legislação brasileira e seu tratamento tributário. Como é sabido, programas de computador foram definidos pela Lei nº 9.609/98, que lhes conferiu a mesma proteção concedida às obras literárias pela legislação de direitos autorais. A chamada ‘Lei do Software’ estabeleceu, ainda, que o uso de programa de computador será objeto de licença.
Esse conceito, contudo, não impediu que se formasse uma disputa férrea entre Estados e Municípios pela tributação das empresas de software, que hoje representam um segmento importante da economia, com potencial de desenvolvimento ainda maior, à medida em que a economia se transforma para se tornar cada vez mais digital.
De um lado, os Estados entendem que software – assim com outros bens e mercadorias digitais – estão sujeitos à incidência do ICMS, sob a premissa de que a ausência do suporte físico é absolutamente irrelevante, haja vista a desmaterialização do conceito de mercadoria, já aceita desde a Constituição de 1988, que incluiu no campo de incidência do ICMS o fornecimento de energia elétrica. Os Estados apoiam-se, ainda, na liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal ao analisar a legislação do Estado do Mato Grosso na ADIN 1945, concedida em 2010, discutindo a incidência do ICMS sobre download de software.
Do lado dos municípios, a visão é exatamente a oposta, no sentido de que tudo o que não for mercadoria é passível de tributação pelo ISS, desde que incluída na Lei Complementar 116/03. Para os municípios, serviço são bens imateriais dentro do contexto de produção econômica e o argumento de que cessão de direitos não seria serviço por não constituir ‘obrigação de fazer’ já teria sido superada quando do julgamento da incidência do ISS sobre cessão de uso de marca.
Entre essas duas posições antagônicas, existem argumentos para afastar tanto um quanto outro tributo. Em relação ao ICMS, as posições contrárias à tributação sustentam que o imposto estadual somente poderia incidir sobre mercadorias que possam ser objeto de circulação econômica, com transferência de titularidade, o que não ocorreria no caso de softwares e outros bens e mercadorias digitais, cujo uso é cedido mediante licença. Em relação ao ISS, o argumento principal apoia-se no conceito de obrigação de fazer da legislação civil e no conceito clássico doutrinário, no sentido de que o imposto somente pode incidir sobre a prestação de serviço humano em caráter negocial, o que afastaria a possibilidade de tributação de licenças de uso de programas de computador.
Tais discussões e argumentos devem ser revisitados em razão da inevitável evolução de novas tecnologias, acompanhada de novas modalidades de oferta e contratação de bens, mercadorias e serviços digitais. No afã de capturar esses ‘novos’ fatos geradores, a Lei Complementar nº 116/03 foi alterada pela Lei Complementar nº 157/2017, com a inclusão de novos itens de serviços. Ao mesmo tempo, os Estados, através do Convênio ICMS nº 106/217, de discutível legalidade, determinou as regras para incidência do imposto sobre operações com bens e mercadorias digitais, dispondo, por exemplo, que o imposto será recolhido ao estado do adquirente da mercadoria ou bem digital, além de regras de responsabilidade que permitem aos Estados cobrar o tributo dos intermediadores financeiros.
Diante disso, novamente os contribuintes se veem pressionados a tomar decisões importantes que irão afetar sua tributação e o cumprimento de obrigações acessórias, em um ambiente de absoluta incerteza jurídica, onde os meios legais de obter uma solução, ainda que existentes, são de difícil operacionalização, sem contar os custos envolvidos, possibilidade de decisões em sentidos divergentes, sem falar na longa duração das discussões judiciais no Brasil.
Apenas para exemplificar, empresas com estabelecimentos em mais de um Estado e que tenham base de clientes em todo o país teriam, caso optassem por ações consignatórias, múltiplas discussões envolvendo cada município de origem com o correspondente Estado de destino da operação. Não é difícil imaginar as questões práticas que tais ações consignatórias poderiam acarretar – para ilustrar, imaginemos um mesmo cliente, ora sendo tributado pelo ICMS, ora pelo ISS, a depender da respectiva decisão da consignatória abrangendo o Estado onde seus estabelecimentos estiverem localizados.
Acrescente-se a esse cenário as dificuldades que outros ‘players’, como empresas de meios de pagamento e cartão de crédito, passarão a enfrentar diante da possível responsabilização em caso de não pagamento do ICMS pelo site ou plataforma cuja operação tiver sido por elas intermediada.
Na realidade, inúmeras são aberrações que os conflitos tributários podem trazer para os contribuintes que integram a economia digital. Além das questões envolvendo ICMS e ISS, as empresas tem ainda que enfrentar as posições recentes da Receita Federal sobre a tributação de direitos de distribuição. Diante disso, a única solução viável no curto prazo parece ser de lege ferenda, com a parametrização e harmonização da tributação em todos os níveis, sob pena de os conflitos causarem a paralisação de novos investimentos ou suspensão, até que o cenário se torne menos inóspito.
Fonte: Jota Info